Sem teto, sem paredes e sem chão
Esquecidos pelo Estado, brasileiros sofrem com a falta de moradia e políticas urbanas

Era uma casa nada engraçada, não tinha teto, não tinha nada, ninguém podia entrar nela, não, porque na casa não tinha chão. Essa casa também não tinha família, saneamento básico e dignidade. Na rua da incerteza, boa parte das famílias brasileiras dormem com o sonho da casa própria e acordam no pesadelo de não ter onde morar. Moradia, um verbete que envolve tantas questões como: acesso, segurança e acolhimento para tantas famílias, para outras, casa é lugar de insegurança e perigo.
No Brasil cerca de 17,4 milhões de pessoas se encontram em situação de déficit habitacional, segundo dados da Fundação João Pinheiro em 2019. Esses dados englobam três categorias: habitação precária, ônus excessivo com aluguel e coabitação. De acordo com o Ipea, cerca de 88% das famílias nessas condições recebem até 3 salários-mínimos, esse número é composto, principalmente, por pessoas negras e mulheres.
Casas precárias, improvisadas e ocupações. Esse é o panorama habitacional de boa parte dos brasileiros. O crescimento desordenado dos grandes centros urbanos, soma-se à falta de ações públicas governamentais, fundamentais para pensar em uma cidade acessível, sobretudo para a população mais vulnerável. Segundo a Constituição Federal, a política urbana deve proporcionar “o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos seus habitantes”. O Estatuto da Cidade, com mais de duas décadas, estabelece as diretrizes das políticas urbanas, que incorporam os aspectos sociais, econômicos e ambientais. Entre eles, a função social da cidade e dar plena funcionalidade para as infraestruturas instaladas.


Por outro lado, o Censo demográfico de 2022 mostra um recorde em domicílios vazios, cerca de 11 milhões de casas desabitadas, de acordo com o IBGE. A cada 100 casas e apartamentos particulares, 13 estão vagos. A proporção aumentou desde o censo anterior: eram 9 a cada 100, em 2010.
Para Karinne Matarim, economista e mestranda em Planejamento Urbano pela UFRJ, o resultado do censo “não é um fato novo”, era um padrão já observado pelos pesquisadores: um número maior de imóveis vazios, do que efetivamente o número de pessoas sem casa própria. “Não é que esteja faltando moradia. Isso não indica que a gente precisa necessariamente construir casas novas, mas que os imóveis que já existem não são acessíveis para grande parte da população”, afirma Matarim.
11 Milhões
De casas sem gente e gente sem casa. Segundo o novo Censo do IBGE revela que em 12 anos os números de domicílios vagos aumentou 87% no entanto 6 milhões de pessoas ainda estão sem casa.
“Temos o histórico de remoções na cidade do Rio de Janeiro, e em todo o Brasil é muito comum", diz Karinne. A pandemia do Coronavírus agravou esse problema crônico do país. Entre março de 2020 e outubro de 2022, quase 1 milhão de pessoas foram despejadas de suas residências, segundo o levantamento feito pela Campanha Despejo Zero. Uma vez que muitas pessoas perderam o emprego, sua fonte de renda e passaram a não ter mais condições de arcar com o aluguel, acabaram por ser despejadas de suas casas. Ainda que medidas fossem tomadas pelo Supremo Tribunal Federal para evitar as remoções, elas foram tomadas num momento de extrema calamidade pública devido à Covid-19.
“Não é como se ocorresse despejo apenas durante a pandemia”, comentou. Segundo Matarim a necessidade de pensar outras alternativas para além da construção habitacional é urgente, “É preciso pensar mais amplamente. Pensar política habitacional para além da construção de casas, mas sim, como conseguir manter as pessoas em suas casas, e assim efetivamente atuar garantindo habitação digna, de qualidade e segura”, finalizou.

Um ano da ocupação Luiz Gama e a atuação MLB
Rua Alcântara Machado, 24, em um prédio abandonado há anos no centro do Rio de Janeiro, mais de 70 famílias ocuparam o imóvel, na noite de 16 de novembro de 2022. A ocupação Luiz Gama completou um ano. O nome dado a ocupação, não foi por acaso, é uma homenagem ao intelectual negro brasileiro, Luiz Gama, patrono da abolição da escravidão no Brasil.
A ocupação organizada pelo Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) contou com a Dandara Ameijeiras, estudante de Jornalismo na UFRJ, que esteve presente todos os dias no prédio durante a ocupação. “Foi bem pesado. Só que ideologicamente nós estamos bem fortes. É inevitável ficar feliz, pensar que estamos nos mudando para o centro da cidade, perto de onde tem saúde e educação de qualidade, perto dos empregos, da cultura”, comenta a estudante.
Seu Antônio Jorge, militante do MLB, morou na ocupação Luiz Gama. Antes de se mudar, ele morava em um depósito de barraquinhas de camelôs. “Um lugar completamente insalubre, muito ratos e baratas”, lembrou. Na ocupação, Antônio ocupou o cargo de liderança na equipe de infraestrutura, tornando possível ter água e luz no prédio. Quando tiveram que desocupar o imóvel, ele voltou à situação anterior, sem qualquer expectativa de mudanças prometidas pela Secretaria Municipal de Habitação.
Um levantamento do Làba, grupo de pesquisa e extensão da Faculdade de Direito da UFRJ, mostra que 13 mil famílias vivem em prédios abandonados do Rio de Janeiro. Mas para essas pessoas a ocupação desses imóveis é uma mudança de vida. “As crianças conseguiam conversar com mais perspectiva de futuro. É muito difícil expressar em palavras a dor que eu senti quando uma criança disse que gostava da ocupação porque não ficava sozinho e comia todos os dias”, conta Dandara.
Elza Cavalcante, coordenadora do MLB, ressalta sobre o abandono das famílias depois da desocupação. “Nós estamos reunidos com as famílias dando assistência ainda”, diz. “Eles não recebem o auxílio aluguel e as famílias continuam sem moradia, moram de favor nos lugares de origem deles, sem qualquer segurança. Nós do MLB ainda estamos em negociação para conquistar um prédio para ser a moradia dessas famílias.”












Foto: @cupa.luizgama
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A luta por moradia e contra a especulação imobiliária
A especulação imobiliária no Brasil é um fenômeno complexo que impacta diariamente a vida dos cidadãos. Esse processo, caracterizado pelo aumento desproporcional dos preços dos imóveis, muitas vezes com valores descolados da realidade socioeconômica das áreas afetadas.
“O espaço estava entregue à especulação imobiliária e ao abandono. Uma resposta à realidade são as ocupações urbanas, e a Luiz Gama veio não só como uma resposta a essa realidade, mas também como uma resposta à negligência do Estado”, afirma Dandara sobre a origem da ocupação.
Uma das formas das comunidades se protegerem da especulação imobiliária é o TCC, Termo Territorial Coletivo. Esse modelo de organização local permite que moradores tenham a titulação individual de suas casas, ao mesmo tempo, em que mantêm uma pessoa jurídica – criada e gerenciada por moradores – que tem a propriedade da terra. Desde a década de 1960, a iniciativa que começou nos Estados Unidos por parte das comunidades, para se protegerem contra o risco de uma remoção branca – termo utilizado para a retirada de famílias a partir da especulação imobiliária – existe em todos os lugares do mundo. Ainda que seja apenas em algumas partes de uma comunidade, no final, acaba protegendo a comunidade toda de uma futura remoção. Segundo Karinne Matarim, a ferramenta vem a bastante tempo sendo aplicada de forma muito bem-sucedida.
“O Termo Territorial Coletivo, é um instrumento muito interessante, em que a terra é propriedade de uma determinada comunidade,” explica Matarim. “É uma alternativa para se proteger da especulação imobiliária e não esperar que o Estado faça isso.”
Hoje, os Estados Unidos contam com mais de 250 TCCs ativos, com isenções fiscais devido ao seu caráter social e crescente apoio do Poder Público a essa iniciativa. Em 2004 foi instituído o Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña, uma das primeiras iniciativas com o TCCs no âmbito da América Latina. O modelo foi implementado em um território que abriga cerca de 6.000 famílias — dentre as quais 2.000 aderiram ao Termo Territorial Coletivo, localizado no entorno do canal Martín Peña, que atravessa o centro da cidade de San Juan, capital de Porto Rico.
Em 2023, o Projeto TTC caminha para completar cinco anos, com o objetivo de trazer o TTC para a realidade dos assentamentos informais cariocas e do Brasil como uma solução fundiária capaz de garantir sua permanência e fortalecimento da luta por moradia no país.