Seca no extremo norte de Minas escancara a marginalização dos Xakriabá
Indígenas sofrem com escassez hídrica, que prejudica produção agrícola e deixa crianças sem aula

A ciência faz o alerta: parte do semiárido brasileiro, que abarca mais de 1,2 mil municípios, pode virar deserto nas próximas oito décadas. Um estudo desenvolvido pelo Instituto de Ciências Atmosféricas (Icat) da Universidade Federal de Alagoas indica a possibilidade de que o volume de chuvas na região, que é tradicionalmente seca, diminua em cerca de 40% até 2100. Bem antes do fim do século, porém, os indígenas Xakriabá já têm precisado lidar com os efeitos das mudanças climáticas no extremo norte de Minas Gerais.
“Parece que, de ano em ano, a chuva está diminuindo”, conta José Fiúza (73), uma das principais lideranças da aldeia Itapicuru. Com a escassez hídrica, as aulas nas escolas da região ficam suspensas por semanas e até mesmo a flora tradicional do sertão sucumbe. "A gente vai nos gerais e vê que as árvores mais velhas estão morrendo: os pequizeiros, as favelas, os paus-terras, os jatobás, as sucupiras."
Casos de suicídio entre os mais jovens também têm preocupado a comunidade. De acordo com um estudo da Fiocruz, o número de suicídios entre indígenas é de duas a três vezes mais alto que na população brasileira como um todo. A pesquisa, publicada na revista Lancet em setembro deste ano, também aponta que os casos são mais frequentes entre a juventude: a incidência de lesões autoprovocadas é maior na faixa de 10 a 24 anos.
Para lidar com o problema da falta de água, os indígenas têm recorrido a cisternas e poços. Mas, especialmente nos últimos dez anos, nem essas soluções têm surtido efeito: a água já não brota do solo como antes. Algumas aldeias dependem hoje do serviço de caminhões-pipa, que não atende suficientemente às demandas de milhares de famílias.
Com um período de chuvas mais curto e instável, quem sempre tirou o sustento da terra, seguindo os ciclos do sertão, agora se pergunta se vai ter água para cozinhar, lavar as roupas e até mesmo beber no dia seguinte. “Água que a gente possa consumir é muito pouca”, conta Fiúza.
O agricultor era um dos 3 mil Xakriabá que viviam na Terra Indígena quando ela foi demarcada, em 1987. Hoje, compartilhando o mesmo espaço e recursos cada vez mais reduzidos, já são cerca de 10 mil. Esse número representa quase 80% dos 13 mil habitantes de São João das Missões, município onde está localizado o Território Indígena Xakriabá e que fica perto da divisa com a Bahia.
Emancipado em 1995, São João das Missões ostenta o maior percentual de habitantes indígenas do Sudeste brasileiro e um dos maiores do país. Trata-se também da cidade com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Minas, de um total de 853.
Os Xakriabá, historicamente, viveram às margens do São Francisco. Foi em contato com rios “profundos como a alma de um homem”, como escreveu Guimarães Rosa, que o grupo desenvolveu toda a sua cosmologia – o nome “Xakriabá” quer dizer “bom de remo”. No entanto, ao longo do processo de colonização brasileiro, os indígenas foram isolados em áreas com menos recursos hídricos.
Hoje, para recuperar o acesso ao principal corpo de água do semiárido brasileiro, os Xakriabá lutam pela ampliação do território.

São João das Missões, a 255 quilômetros de Montes Claros (MG), é considerado o município com a pior qualidade de vida do estado. Foto: Eumar Félix / Climate Disaster Project.
São João das Missões, a 255 quilômetros de Montes Claros (MG), é considerado o município com a pior qualidade de vida do estado. Foto: Eumar Félix / Climate Disaster Project.
Pelo direito à sobrevivência

A história de Domingos Nunes, 50, cacique dos Xakriabá, é marcada por uma tragédia. Em 1987, quando era criança, ele viu o pai e o tio serem assassinados por grileiros da região. A escalada da violência contra os indígenas contribuiu para que o território que ocupavam fosse demarcado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A demarcação, ao menos oficialmente, blindou as terras contra não indígenas invasores.
Nunes acredita que, se a região ainda fosse dominada por grandes fazendeiros, até mesmo o Rio Itacarambi – o único que ainda existe na reserva – já teria secado. Graças a uma barragem que controla sua vazão, o riacho fornece água para as 37 aldeias da reserva, além de para comunidades não indígenas do entorno. Sua nascente está localizada na aldeia Barreiro Preto, e os Xakriabá se empenham na preservação da mata ciliar.
Como principal liderança da comunidade, Nunes reivindica a homologação de mais 43 mil hectares de terra, de modo que as aldeias possam recuperar o acesso ao São Francisco. Para ele, essa é a única forma de os Xakriabá sobreviverem “por mais tempo”.
O cacique não esconde o temor de que reocupar a margem do Velho Chico seja apenas uma solução paliativa para o seu povo, já que “até o São Francisco os não indígenas estão matando”. Estima-se que, em 35 anos, o rio tenha perdido mais de 30 mil hectares de superfície com água.
A ideia de que as reservas subterrâneas de água possam secar perturba os Xakriabá. “A gente não sabe se está usando água de que os nossos filhos e netos vão precisar no futuro”, diz Nunes.
Clima mais quente e seco

“Ô, meu pai, manda chuva”, roga Celia Mota, dona de uma pousada em São João das Missões, enquanto se abana com um lenço e contempla com os olhos semiabertos o céu sem nenhuma nuvem. Ela faz coro à percepção de que, nos últimos dez anos, o clima ficou bem mais quente e seco, até mesmo para os padrões da região.
Décadas atrás, os agricultores sabiam que as chuvas chegariam no início de novembro, mantendo-se com alguma regularidade até março. Com isso, semeavam suas lavouras “no pó” – isto é, na terra seca, sem a água da chuva – no fim de outubro, contando com o período chuvoso. Hoje, as chuvas começam bem mais tarde, e os intervalos entre uma e outra estão mais espaçados. Com isso, muitas plantações não vingam.
“Isso aqui tudo embrejava”, relembra Maria Júlia Souza, 54, moradora da aldeia Brejo Mata Fome. Ela se refere à formação de áreas alagadas, de aparência pantanosa, associada à precipitação. Os brejos, hoje, são mais raros na paisagem da região. A família de Souza recorre a um pequeno açude para captar água da chuva e depende dos caminhões-pipa.
Eumar Félix, 56, que trabalha como guia no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu e mora em Itacarambi, município vizinho de São João das Missões, se lembra de que as chuvas na região eram bem mais intensas. Na sua infância, quando ajudava o pai nas lavouras, às vezes precisava atravessar grandes alagados, “com a enxada no ombro e água até o peito”.
Hoje, nem nos períodos chuvosos o Velho Chico alcança o volume de água do passado.