RARO MATIAS: A LUTA DE PESSOAS COM DOENÇAS RARAS NO BRASIL
Desde teste do pezinho pouco amplo até dificuldade em efetivação de leis e pouca assistência estatal, são muitas as dificuldades de portadores de anomalias raras. Por sorte, também é muita a união e solidariedade das comunidades

Quem não gosta de um bom bazar? Roupas e diversos utensílios em bom estado, com preço em conta e ainda a oportunidade de ajudar alguém. Foi desse pensamento que surgiu, no pátio de uma igreja evangélica, um evento trimestral que reúne moradores do Bairro dos Trezentos e vizinhos, em São João de Meriti, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. O bazar “Raro Matias” leva o nome da razão de sua existência. O menino, de 6 anos, tem um diagnóstico raro: Acidúria Glutárica tipo 1 (AG1). A disfunção metabólica exige de seus pais, Nathalia Andrade e Marlon Jesus, uma estrutura financeira para custeio de alimentação específica, equipamentos de suporte e viagens para consultas especializadas. Boa parte do dinheiro eles conseguem através de eventos como o Raro Mathias, que terá, agora em dezembro, sua edição especial de fim de ano.
O projeto solidário nasceu de um conjunto de membros da Primeira Igreja Batista em Jardim Sumaré que, visando ajudar o jovem casal com os custos do tratamento do filho (que, a essa altura, já se entendia que poderia passar de 20 mil reais) decidiram reunir doações e promover a ‘mini feira’ em um dia de sábado. O primeiro bazar, que não contou com presença da família, já que o pequeno Matias estava internado, arrecadou cerca de mil reais após sete horas aberto. O momento da contagem do valor foi comemorado pelos familiares e amigos do casal que eram voluntários. Desde então, com exceção dos meses de pausa durante a pandemia, o projeto acontece religiosamente de três em três meses, e já é popularmente conhecido pelo bairro e adjacências.

Um dos dias de vendas do Bazar. Foto: Acervo Instagram @raromatias
Um dos dias de vendas do Bazar. Foto: Acervo Instagram @raromatias
As primeiras vendas começaram meses após a descoberta de Nathalia, 34, e Marlon, 39, de que seu filho era uma das raras crianças com o diagnóstico de uma disfunção inata metabólica, como é chamado o grupo de doenças genéticas que estão relacionadas ao funcionamento do metabolismo. A acidúria glutárica de tipo 1 é herdada da combinação de genes recessivos dos progenitores. Ela afeta a enzima responsável pela quebra das proteínas recebidas no organismo, fazendo com que o dispositivo biológico não faça, ou não faça bem, o seu trabalho de repartidor de proteínas. Esse defeito na digestão pode levar a sequelas no desenvolvimento cerebral de quem consome qualquer coisa do grupo alimentar. Matias, que próximo de completar o primeiro ano de vida, já tinha recebido leite materno e também iniciado sua introdução alimentar, teve algumas dessas sequelas. Foi por conta delas que seu primeiro diagnóstico, falso, foi de paralisia cerebral.
Foi a mãe, formada em engenharia civil, quem primeiro suspeitou que algo estava errado: “Ele apresentava atraso no desenvolvimento, não sustentava o pescocinho”. Daí, começou uma busca em diferentes médicos para uma resposta, que, de primeira, não foi a certa. “A princípio, Matias teve diagnóstico de paralisia cerebral, mas a gente não estava muito a favor, não estávamos realmente confiantes.” Incertos, Nathalia e o esposo seguiram em busca de outro laudo que fosse mais conclusivo, até que, em uma consulta em um hospital infantil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma nutróloga especializada em crianças desconfiou de AG1, e os encaminhou para uma rede carioca conveniada com o SUS. Ali, veio o diagnóstico conclusivo, e se iniciou uma jornada pelo tratamento adequado para o filho único do casal.
O pequeno faz parte dos 13 milhões de brasileiros, segundo o Ministério da Saúde, portadores de alguma doença rara. Pode parecer um número expressivo demais para a alcunha de “raridades", mas é preciso considerar que isso não chega a ser nem dez por cento da população nacional e também que a medicina atual estima que a AG1 seja apenas uma das prováveis oito mil doenças raras existentes no mundo. Dessa conta gigantesca, apenas seis são detectadas pelo Sistema Único de Saúde - SUS, no atual Plano Nacional de Triagem Neonatal, que conta com o teste do pezinho como o caminho para o diagnóstico de doenças raras. Em redes particulares, já se tem acesso ao “teste ampliado”, que pode encontrar até 30 doenças e, em países como os Estados Unidos, a rede laboratorial já tem o chamado teste “expandido” que detecta até 56 doenças.
Para Larissa Carvalho, mãe do Théo, que também tem acidúria glutárica, a solução para salvar mais vidas, e com menos sequelas, está na ampliação do teste na rede pública e na prevenção a casos como o de seu filho que, assim como Matias, recebeu o que se chama de diagnóstico tardio. O tempo de espera até a descoberta da doença pode levar a graves sequelas e atraso no tratamento. “Não efetivar a lei, não colocar a lei na prática, é muito grave, é assinar embaixo de cada bebê que aos 5, 6 meses, 10 meses vai ter uma crise, os pais não vão saber o porquê, os médicos vão custar a entender porque diagnóstico tardio é uma realidade no Brasil em relação às doenças raras e nesses casos, tempo é cérebro.” A mãe acredita que o tempo, nesse caso, é o ponto chave da questão: “Quanto mais demora para conseguir o diagnóstico, mais a criança vai ter sequela em um nível mais alto, no sentido de ser irreversível. É muito grave tudo isso”.

Foto: Carol Salgado
Foto: Carol Salgado
A jornalista da Globo Minas se considera uma agente social na causa de pessoas com doenças raras e seus cuidadores. Desde 2019, quando descobriu que seu filho Théo, de até então um 1 e 8 meses, tinha a AG1, a mineira decidiu usar de sua profissão e espaço em suas redes sociais para falar sobre a doença, maternidade atípica, e a luta de implementação de políticas públicas que amparem mães e lares como o dela. Sua história foi bastante divulgada depois do Ted Talk disponível no Youtube “Eu matei os neurônios do meu filho”, de 2020, e também o documentário “Uma gota de esperança”, original Globoplay, de 2021. Neles, Larissa fala sobre a Lei nº 23.554, sancionada em 2020, que garantiu a ampliação do teste do pezinho na rede estadual de saúde de Minas Gerais. A decisão judicial foi conquistada através de um abaixo assinado do Instituto Vidas Raras, Organização (ORG) que dá suporte a portadores de doenças raras e seus familiares, que foi compartilhado e engajado pela jornalista em suas redes sociais, e ganhou mais de 600 mil assinaturas.

Foto: Marcelo Prattes
Foto: Marcelo Prattes
Esse movimento reverberou até o governo federal e, em 2021, foi sancionada a Lei nº 14.154, que determina a ampliação do teste do pezinho para até 53 doenças pelo SUS, em todo o Brasil. Mais de um ano após sua regulamentação, a efetivação da Lei está abaixo do esperado para Larissa e tantas outras mães atípicas. O prazo inicial para a total implementação dos testes ampliados é de até cinco anos, e o projeto conta com cinco fases que dividem as tantas doenças raras em diferentes níveis. Segundo o Ministério da Saúde, porém, 13 estados do Brasil ainda não saíram da primeira fase e não há previsão real do alinhamento da atual gestão sanitária com o cronograma legislativo.
Em outubro deste ano, o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, anunciou em pronunciamento oficial a ampliação do teste do pezinho para detecção de até 40 doenças.
De acordo com a Superintendência de Atenção Primária à Saúde (APS), cerca de 75% dos recém-nascidos no estado em unidades da rede pública realizam o atual teste do pezinho. Os números se diferem fora do sudeste, e os estados do Piauí e de Pernambuco, tem, por exemplo, as baixas taxas de 24% da população recém nascida que faz o teste do pezinho.
Para Cláudio Cordovil, pós-doutor em Informação da Saúde e pesquisador em doenças raras e saúde pública pela Fiocruz, tão importante quanto a ampliação e expansão do teste do pezinho, é sua acessibilidade e incentivo. “Ginecologistas e obstetras deveriam adotar rotinas de orientar adequadamente as gestantes sobre a importância de realizar o teste do pezinho até o quinto dia após o nascimento (período no qual é mais fidedigno). Uma medida simples, mas que infelizmente não é a regra. Haveria que se ter campanhas frequentes promovendo o teste do pezinho nos meios de comunicação, da mesma forma que se faz com a vacinação. Não entendo porque ainda não pensaram nisso”, questiona o pesquisador.
Atualmente em trâmite, e no aguardo da relatoria do Senador Paulo Paim (PT-RS) a PL 2797/2022, de autoria da senadora Mara Gabrilli (PSDB/SP) e dos senadores Flávio Arns (PODEMOS/PR) e Eduardo Gomes (PL/TO), institui a Política Nacional do Cuidado. Seria como um quarto elemento na configuração da Seguridade Social, que hoje abrange saúde, previdência e assistência social. O Projeto de Lei acompanha uma discussão social sobre quem seriam ‘os cuidadores dos que cuidam’, acalorada pelo tema da redação do último ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2023, que debateu o papel feminino do cuidado na sociedade brasileira. Sobre apoio psicológico e financeiro a cuidadores de pessoas raras e com deficiência, Larissa diz que tem como um arrependimento não ter incluído tal questão na aprovação da lei em Minas. “Era meu sonho ter incluído na lei essa questão, porque quem cuida precisa de muito cuidado. Quem cuida vive uma carga de trabalho impensável para quem não é cuidador. Quem não cuida não consegue imaginar o que é viver em função de uma criança com deficiência. É para sempre, é todos os dias, é todos os minutos.”
De acordo com pesquisa do DataSenado, 56% dos entrevistados consideraram estressante a atividade do cuidador, 55% deles consideraram-se sobrecarregados no dia-a-dia. A repórter do MGTV acredita que o apoio governamental é necessário para diminuição dessa parcela, e o não-adoecimento dos cuidadores. “É preciso montar um plano de um grupo de enfermeiros, técnicos de enfermagem, para cada uma dessas famílias, para que a mãe consiga trabalhar, ou que a mãe consiga deitar e descansar por três horas.” Larissa acredita, ainda, que a falta de apoio e estrutura pode levar ao adoecimento dos cuidadores: “Nós estamos adoecendo uma boa parcela da sociedade, que poderia ser produtiva e precisa estar atenta aos cuidados das pessoas com deficiência. E elas não estão sendo cuidadas. E quando elas não são cuidadas, elas adoecem e todo o risco de morte aumenta. O adoecimento de quem cuida é assunto muito sério”.
Ao contrário da jornalista, os pais de Matias atualmente não dispõem de condições financeiras para contratar um profissional que cuide parcialmente do menino, que é dependente para todas as atividades básicas, como comer e tomar banho. Em contrapartida, também não estão aptos a receber auxílio financeiro do Estado, graças à bolsa de Nathalia, atualmente cursando doutorado na UFRJ. Hoje, com ela na pesquisa de forma híbrida e Marlon, formado em Design Gráfico e atualmente videomaker, trabalhando de home-office, os pais se revezam e compartilham da rotina para os cuidados, consultas e ainda estudo do filho. Eles contam que são gratos pela rede de apoio familiar que os auxilia. O grupo conta com os avós maternos e paternos de Matias, e uma tia-avó do garoto. Sobre a exaustão mental de quem cuida, Nathalia, que optou por fazer terapia em 2020, durante a pandemia, comenta: “Achava que estava em um momento em que eu já entendia de tudo sobre o Matias, já lidava bem com a questão, aí eu vi que não”, reflete a engenheira, sobre a maternidade atípica.

Nathália e Matias, em uma das consultas presencias feitas durante a pandemia. Foto: Acervo Instagram @raromatias
Nathália e Matias, em uma das consultas presencias feitas durante a pandemia. Foto: Acervo Instagram @raromatias
Após cinco anos do início do Bazar, Nathalia e Marlon acreditam que, para além da arrecadação, o projeto também exerce função social na comunidade meritiense: “Acabou tomando uma proporção social, ajuda muito o Mathias, mas agora, que ficou muito conhecido, recebe muitas pessoas de baixa condição financeira, que só conseguem comprar no Bazar”, explica o pai de Mathias, lembrando que a faixa de preço dos mais variados itens da venda, que podem variar de dois a 30 reais. “Porque fica localizado na Baixada [Fluminense], a gente sabe que não tem condições de cobrar um preço caro”, complementa a mãe. Marlon ainda relembra quando, em umas das edições da venda, próximo ao feriado natalino, uma mãe levou seus quatro filhos para fazer as compras de natal no Bazar : “Só tinham condições de fazer essas compras no bazar”.
Eles relatam, ainda, que desde o início das arrecadações para o tratamento do filho, só fizeram vaquinha duas vezes. “Nós preferimos a troca, poder abençoar alguém também”, contam os responsáveis do Matias. Hoje, eles também se sentem seguros por cada bazar cobrir grande parte do custo do tratamento e viagens que Matias faz, anualmente, aos Estados Unidos, para se consultar na Clinic for Special Children, consultório especializado em AG1, localizado na Pensilvânia. Sem conseguir ir desde a pandemia, os pais do menino esperam poder voltar lá ano que vem. “No momento, nossas consultas são online”, Nathalia conta, esperançosa.

Matias e seus pais, em 2018, na primeira consulta na Clinic for Special Children, no estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Foto: Acervo Instagram @raromatias
Matias e seus pais, em 2018, na primeira consulta na Clinic for Special Children, no estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Foto: Acervo Instagram @raromatias
Os papais mantêm a conta no Instagram @raromatias e por lá divulgam as edições do bazar e compartilham momentos na trajetória e cotidiano do pequeno raro. Também tem um link, na descrição das redes sociais do projeto, em que explicam sua história. Nathalia e o marido se tornaram ativistas graças ao filho. “Para lutar em favor de outras crianças, né? Para que o diagnóstico tardio e as sequelas não aconteçam com outras crianças, com outras famílias”, sonha a mãe de Matias.

Foto: Acervo Instagram @raromatias
Foto: Acervo Instagram @raromatias