Quando as mil palavras que uma imagem vale são mentiras?
Sem lápis, canetas ou mouses, artes criadas por inteligência artificial enganam até jurados de concursos

Se uma imagem vale mais do que mil palavras, uma imagem falsa vale mais que mil mentiras?
O debate sobre a legitimidade do uso de inteligência artificial no mercado de artes segue acalorado, só este ano (2023) tivemos três participações em concursos desclassificadas pelo uso de IA’s no seu processo de criação. O Prêmio Jabuti, premiação realizada pela Câmara Brasileira de Livros barrou o designer Vicente Pessôa da disputa sob pretexto de ter utilizado do aplicativo Midjourney, uma inteligência artificial generativa, no processo de criação da capa do livro “Frankenstein”, com o qual estava competindo pelo prêmio. Outro concurso de design de capas de livros, o SPFBO (Self-Published Fantasy Blog-Off), dirigido pelo autor Mark Lawrence, teve o prêmio concedido a uma capa que posteriormente se descobriu ser uma colagem de diferentes imagens feitas por IA. Além disso, uma premiação de fotografia elegeu uma foto feita por IA como vencedora da categoria de fotos criativas.

Pseudomnesia: The Electrician | Foto vencedora da categoria criativa do festival Sony World Photography Award. Reprodução: BBC
Pseudomnesia: The Electrician | Foto vencedora da categoria criativa do festival Sony World Photography Award. Reprodução: BBC

Foto de Suzi Dougherty, desclassificada por supostamente utilizar inteligência artificial
Foto de Suzi Dougherty, desclassificada por supostamente utilizar inteligência artificial
Também este ano, a fotógrafa Suzi Dougherti foi desclassificada do concurso promovido pela gráfica Charing Cross Photo por ter sua fotografia confundida com arte produzida por IA. Não importa em que setor do mercado de arte, provavelmente as ferramentas de inteligência artificial já estão exercendo sua influência em seu comportamento. O festival de fotografia australiano Ballarat International Foto Biennale encontrou como forma de lidar com a tecnologia, inserindo pela primeira vez um concurso de imagens geradas por inteligência artificial, o ”Prompted Peculiar” que ofereceu um prémio de 2 mil dólares para o vencedor. A comissão do evento, classificou o concurso como um convite ao debate sobre o local de pertencimento desta nova forma de arte, que está se popularizando pelo termo ‘promptography’ (promptografia), união dos termos fotografia e prompt (os comandos utilizados para gerar as imagens).
E o que são essas inteligências artificiais?
A inteligência artificial é um campo da ciência da computação que lida com a criação de máquinas inteligentes. O termo, refere-se à capacidade das máquinas de executar tarefas que normalmente exigem inteligência humana, como percepção visual, reconhecimento de fala, tomada de decisões e tradução de idiomas. É um campo de estudo que combina ciência da computação, engenharia, matemática e psicologia cognitiva para criar máquinas inteligentes que podem "pensar" e "aprender" como os seres humanos.
O conceito de inteligência artificial nasceu em meados do século XX por John McCarthy, cientista da computação americano, considerado o pai da IA. O termo foi utilizado pela primeira vez em 1956, em uma conferência de especialistas em Dartmouth College, chamada “O Eros Eletrónico”, definindo seu significado como “a ciência e a engenharia de produzir máquinas inteligentes”.

Imagem gerada artificialmente de uma jornalista explicando a definição de inteligência artificial | Prompt: baroque style beautiful black journalist explaining what is artificial intelligence in the tv news
Imagem gerada artificialmente de uma jornalista explicando a definição de inteligência artificial | Prompt: baroque style beautiful black journalist explaining what is artificial intelligence in the tv news
Machine Learning e as IA’s Generativas
No campo das artes, o tipo de inteligência artificial que vem causando preocupação é o denominado aprendizado de máquina (machine learning), que se concentra no uso de dados e algoritmos para imitar a maneira como os humanos aprendem, melhorando gradualmente sua precisão. Sendo esta a categoria responsável pelas ferramentas como o ChatGPT, Bing IA, Midjouerney, Bard, entre outros, as chamadas inteligências artificiais generativas.
A IA generativa, como o nome já propõe, funciona utilizando os dados para imitar ou gerar atividades humanas, neste caso, atividades como a escrita, criação de músicas, imagens entre outros. Ela “utiliza ideias de outras pessoas para criar, ela não cria nada baseado por ela mesma, digamos assim, ela utiliza o trabalho de outras pessoas”, explica o professor da Escola de Desenho Industrial da UERJ, Bruno Sérgio.
Esse tipo de inteligência artificial funciona, de forma simplificada, utilizando um banco de dados que é alimentado por imagens, vídeos, áudios ou texto dependendo da finalidade da ferramenta que são categorizados por palavras-chaves e, quando se pede à ferramenta para criar algo, ele vai buscar dentro do banco de dados as palavras que foram solicitadas e embaralhar os resultados entre si para montar uma imagem, texto, áudio ou vídeo com as características que foram pedidas.

Imagem gerada artificialmente de um robô estudando | Prompt: Draw a robot studying about artificial intelligence in a desk
Imagem gerada artificialmente de um robô estudando | Prompt: Draw a robot studying about artificial intelligence in a desk
O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro também argumenta que mesmo que se deva prosseguir com cautela, há sim cenários em que a tecnologia pode ser aproveitada, como em trabalhos de bastidores que são agilizados com estas ferramentas. “Criar personas, por exemplo”, afirma o professor. “Uma persona é o resumo de características que você coloca de um determinado cliente seu. Você junta aquelas características em uma persona que você vai atender, para personificar essa persona, se utiliza muito uma imagem, daí se gera uma foto só para lembrar dessa pessoa. Não é nada comercial”, exemplifica Bruno.
Ainda assim, o professor reitera que, enquanto não houver regulamentação, ainda há um longo caminho a percorrer. “Para um objeto final que vai ser comercializado enquanto não há uma legislação específica com relação a isso, eu acho bem complicado”, concluiu.
Alimentação de banco de dados e os problemas com direitos autorais
Um dos grandes debates sobre regulamentação cai sobre os mecanismos de alimentação das bases de dados, uma vez que esses dados não se montam sozinhos. Softwares como Midjourney, Stable Diffusion e DALL-E 2 são treinados com produções de autores reais que, na maioria dos casos, não recebem crédito ou remuneração por isso. Para alimentar esses softwares, são utilizados bots rastreadores (crawlers) que varrem a web buscando coletar imagens para a base de dados da IA. Durante a varredura, os bots não diferenciam as imagens públicas das autorais e, por isso, coletam fotos e artes sem a permissão dos autores.
Os programadores Andy Baio e Simon Willison denunciaram a base de dados LAION-5 por coletar, sem permissão, bilhões de artes publicadas na internet. A forma que a base de dados funciona utiliza bots que procuram qualquer tipo de imagem com texto descritivo e anexam à sua base de dados, sem que haja opção de retirada. O jornalista Charlie Werzel salienta: “Minha maior preocupação é que os conjuntos de dados usados para treinar essas ferramentas estão repletos de imagens que foram coletadas de maneira descuidada em toda a internet, na maioria das vezes sem a permissão dos artistas. Para piorar as coisas, as empresas por trás dessas tecnologias não são transparentes sobre quais materiais brutos estão alimentando seus modelos”.
Além disso tudo, cada vez mais cresce o número de casos de pornografia realizada através de inteligências artificiais. Enquanto uma legislação específica para tratar desta tecnologia tão complexa não chega, cabe permanecermos de olhos abertos para os benefícios e principalmente para os perigos que oferecem.

