“Por falta de partitura Braille, eu desisti”

A escassez desse material abriu espaço para novas ideias que buscam acessibilidade na musicografia para deficientes visuais 

Aos 11 meses de idade, Vanderson perdeu a visão. Então, foi instruído pelos médicos a usar brinquedos com alguma acessibilidade, como instrumentos adaptados e sensoriais. Desde esse momento, ele se apaixonou pelo piano, decidindo se aperfeiçoar quando mais velho. Mas, deparou-se com a escassez de partituras em Braille. Todo mundo ama assistir ao espetáculo de Stevie Wonder. Poucos querem entender e mudar a realidade dessa negligência. “Eu tentei estudar. Fiz um ano de piano clássico, mas por falta de partitura Braille, eu desisti e optei pelo piano popular. Na verdade, não tenho formação acadêmica em música. Todo meu aprendizado foi adquirido na estrada, dando canja”, comenta. 

Mesmo com a Lei Brasileira de Inclusão, popularmente conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que visa à promoção da produção e disponibilização de materiais acessíveis, como a partitura Braille, essa área da musicografia ainda se mantém pouco conhecida. A maioria das escolas de música negligenciam essa parcela de alunos, fazendo com que eles memorizem peças inteiras, demandando um esforço adicional e desestimulando o aprendizado.

Musicografia Braille

“Permitiram que ele estudasse, mas sem oferecer auxílio”, diz Mauro Bernardo Fernandez

Mauro Bernardo Fernandez luta contra a exclusão de pessoas com deficiência visual na música. O professor começou os estudos em musicografia Braille aos 19 anos, quando conheceu um homem cego em Santa Fé, no Instituto Superior de Música. Aprendeu os códigos do sistema para depois estudar as partituras em um curso especializado na Argentina. “Eu me interessei, porque a inclusão de pessoas cegas naquela época era muito limitada. Permitiram que ele estudasse, mas sem oferecer auxílio. Como amigo, ajudei-o a obter materiais e transcrevi textos e músicas para Braille após aprender essa linguagem.”

A partitura Braille desempenha um papel crucial na inclusão e na acessibilidade musical para pessoas cegas ou com deficiência visual. Mauro diz que quem aprende por esse material tem a vantagem de estudar no próprio tempo e de interpretar como quiser. “Ela oferece o benefício de poder ser lida e interpretada quantas vezes o músico desejar. Isso permite uma compreensão profunda da música, sem depender da interpretação de outra pessoa; sem limitar a autonomia criativa”, comenta. 

O Manual de Musicografia Braille é o recurso base para a transcrição e leitura de partituras musicais nos códigos desse sistema. Ele estabeleceu um conjunto abrangente de diretrizes e convenções, permitindo a representação precisa e universal da música escrita. A história desse marco no compromisso com a acessibilidade começa  na invenção do sistema Braille por Louis Braille em 1829, que abriu caminho para a notação musical adaptada. Inicialmente, diferentes países desenvolveram seus próprios sistemas de notação musical em Braille, levando à diversidade e à falta de padronização.

Com o aumento da globalização e da necessidade de colaboração internacional no campo da educação musical, surgiram conferências internacionais nas décadas de 1960 e 1970, nas quais especialistas discutiram a criação de um padrão internacional para a musicografia Braille. Após anos de negociações e cooperações entre músicos cegos, educadores e especialistas em Braille de diversos países, o Manual Internacional de Musicografia Braille foi publicado em 1996.

Desde o aprendizado das figuras das notas até a compreensão de pausas e de linhas de compasso, cada elemento exige uma abordagem sistemática. Este é o primeiro obstáculo que os músicos cegos enfrentam ao explorar esta notação musical. Uma vez dominado o sistema, o próximo passo é a leitura eficaz. O professor argentino explica que, ao contrário da partitura tradicional onde as notas são empilhadas para indicar aquelas que soam simultaneamente, a notação em Braille é mais semelhante a um texto linear, em que as informações são apresentadas uma após a outra, horizontalmente. Enquanto a partitura tradicional utiliza símbolos gráficos para representar o som da música, o Braille dispensa pautas e claves, não necessitando de linhas suplementares. Ele complementa que a leitura ocorre da esquerda para a direita, com os dedos percorrendo as células Braille para decodificar as notas e ritmos. 

Outra diferença é a ausência de isocronia, ou seja, a duração das notas não é expressa visualmente no papel como na notação tradicional. Em vez disso, cada célula Braille representa apenas a nota e sua figura, independentemente de onde esteja localizada na partitura. Isso simplifica a leitura, focando exclusivamente na melodia e nas figuras musicais.

Inovações inclusivas

“É um produto feito por pessoas com deficiência para pessoas com deficiência”, afirma Kelly Cristina da Silva

A equipe Kaffy, formada por alunos do Instituto Benjamin Constant (IBC), busca deixar a musicografia Braille mais acessível, a partir de um projeto para o Desafio Liga Jovem do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). A competição nacional tem o objetivo de solucionar um problema das escolas dos membros, usando a tecnologia. “A divulgação chegou ao IBC por meio da coordenação do Curso Técnico em desenvolvimento de sistemas. Os alunos se animaram, escolheram os orientadores e formaram as equipes”, fala a professora orientadora Joyce Miranda, responsável pela parte de informática. 

A Kaffy está produzindo um aplicativo, chamado Música Por Outros Olhos, a fim de disponibilizar aulas de música mais práticas, sem a necessidade de partituras em sistema de código Braille. Kelly Cristina da Silva, aluna do IBC e líder do projeto, relata que uma das principais barreiras enfrentadas pelas pessoas com deficiência visual no ensino de música é que as aulas e os materiais são extremamente visuais e frequentemente carecem de adaptações ou audiodescrições adequadas. Ao chegar para uma aula, é comum o professor demonstrar visualmente como segurar e tocar um instrumento, o que exclui os alunos com deficiência visual. 

O despreparo dos professores é o problema central retratado por Kelly, faltando-lhes treinamento e sensibilidade para adaptar suas metodologias de ensino. As barreiras atitudinais, como estereótipos e capacitismo, também agravam a negligência, desmotivando os alunos e dificultando ainda mais o processo de aprendizagem. Ao participar de uma prova para ingressar no curso técnico em Percussão de uma renomada escola de música no Rio de Janeiro, ela se deparou com essa exclusão: “Como uma pessoa com deficiência visual, fiquei perplexa ao perceber que não havia nenhuma adaptação disponível para uma das etapas do processo. Solicitei ao professor, quase implorando por misericórdia, como se não fosse um direito garantido pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que houvesse algum tipo de auxílio”. Mas, devido à improvisação de última hora, a adaptação foi inadequada, o que abalou o estado psicológico dela, resultando em uma performance insatisfatória e, consequentemente, impedindo o avanço na avaliação.

Joyce explica que o processo de identificação de dificuldades foi feito com o levantamento de dados, incluindo entrevistas com estudantes de música com deficiência visual e professores da área. “Elas foram essenciais para entender as principais dificuldades enfrentadas por eles ao procurar por recursos educacionais nesta área específica. Com base nessas informações, desenvolvemos uma solução centrada em um aplicativo acessível e inclusivo, projetado para atender às necessidades relatadas.” Kelly complementa: “É um produto feito por pessoas com deficiência para pessoas com deficiência”.

Todos os alunos participantes têm algum grau de deficiência visual: alguns com baixa visão, outros com cegueira total. Kaffy é a primeira letra do nome de cada um envolvido no projeto. Kelly, Artur, Felipe, Fillip e Yndiana. Todos eles em busca de uma mudança nesse cenário excludente da indústria musical. “Como líder da equipe, sinto-me maravilhada por estar nessa função junto com meus colegas. No primeiro período do curso, já estamos vivenciando intensamente a realidade profissional, sob a orientação da professora, o que nos prepara para o trabalho fora da sala de aula, seja em uma empresa ou de forma independente.” 

Além desse projeto, o Instituto conta com outro professor engajado na acessibilidade da música para pessoas com deficiência visual. Fernando Guillhon, na época de seu mestrado, propôs à Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO) o programa RitMáximo. “Queria que parte do meu ensino pudesse ser difundida para outros colegas, e não ficasse só restrito à minha prática”, comenta. A fim de oferecer recursos adaptados, a única coisa que ele exige é que o usuário saiba usar botas de setas, de enter e de esc do computador. 

O sistema de Guillhon inclui três jogos principais: "Percebendo Ritmos", onde o usuário é desafiado a identificar diferentes ritmos musicais; "Percebendo Instrumentos", que testa o reconhecimento de instrumentos musicais em trechos sonoros; e "Gravando seu Som", onde o usuário pode escolher entre diversos instrumentos para criar pequenos trechos musicais usando o teclado do computador. Além dos jogos, o programa oferece seções informativas como "Conhecer os Ritmos", "Conhecer Instrumentos" e "Conhecer Artistas", que proporcionam informações detalhadas sobre a música brasileira. A seção "Ajuda" está disponível para orientar os usuários sobre como usar melhor o software, acessível com um simples pressionar da tecla "F1". Essas funcionalidades não apenas tornam o aprendizado musical acessível, mas também enriquecem a compreensão cultural e artística dos usuários com deficiência visual.

O professor do IBC também se dedica à produção de material educativo. Um exemplo significativo é a criação de uma apostila que ensina pessoas com deficiência visual, tanto cegas quanto com baixa visão, a compreenderem a partitura musical Braille e também a partitura tradicional. Este recurso é crucial para atender às diferentes necessidades dos alunos do Instituto, garantindo que todos possam acessar e aprender música de forma inclusiva. Essa abordagem abrangente não só facilita o aprendizado prático da música, mas também promove a autonomia e a inclusão cultural dos estudantes. “A razão da existência do Instituto Benjamin Constant é esse apoio de incluir a pessoa cega na sociedade. Então, todas as ações que a gente faz aqui dentro, elas caminham nesse sentido."

Música como expressão

 "Eu fiz concurso para fazer a minha música e trabalhá-la do jeito que eu quero”, fala Vanderson Amaral Pereira

“Vivemos em uma sociedade ainda moldada por uma mídia sensacionalista, que tende a associar deficiência com tristeza, dor e peso, ou, por outro lado, a tratá-la com espetacularização”, comenta Sara Bentes

Receber o diagnóstico de perda total ou parcial de um sentido é uma notícia difícil tanto para o paciente quanto para sua família. No entanto, especialistas recomendam que as pessoas busquem atividades que as envolvam e ajudem a superar os desafios da vida, especialmente do ponto de vista da saúde mental. Uma dessas atividades, que tem se mostrado particularmente eficaz, é a arte.

Ao longo da história, muitos artistas com deficiência visual se tornaram grandes inspirações para todos, graças a suas histórias de vida repletas de superação, força e perseverança. Assim como Beethoven, que compôs a Nona Sinfonia mesmo sem audição, diversos artistas continuam a expressar sua arte independentemente da ausência de um dos sentidos. Essas histórias mostram que, apesar das adversidades, a capacidade criativa e a expressão artística não são limitadas por deficiências físicas. A arte se torna, assim, não apenas um meio de expressão, mas também uma ferramenta de resiliência e superação pessoal.


Vanderson Amaral Pereira é um desses exemplos. Para ele, a música é o que o cura e onde ele se encontra. “Ela simplesmente é o que dá razão, me dá força para poder continuar vivendo. Eu sinceramente não sei o que seria da minha vida se não fosse a música.” Além de pianista, ele é servidor público no Instituto Federal do Rio de Janeiro, sendo revisor de Braille. "Eu fiz concurso para fazer a minha música e trabalhá-la do jeito que eu quero”, diz. 

Seu trabalho conta com participações na banda Manaká e nos shows da cantora Sara Bentes. No dia 19 de maio deste ano, ele teve a oportunidade de se apresentar, ao lado do conjunto musical, na Virada Cultural da Solidariedade em São Paulo. Vanderson comenta que ficou realizado por participar desse momento. “A minha alegria é dupla: primeiro que a banda Manaká vai além da música, integrando também o teatro e produzindo arte voltada para a infância. Ela realmente transforma e toca vidas; segundo, porque sou a única pessoa com deficiência na banda. Então, isso é inclusão, de fato, sabe?” 


Vanderson e outros integrantes da banda Manaká na Virada Cultural da Solidariedade. O evento em vários locais de São Paulo contou com tendas de coleta, recebendo doações para as regiões gaúchas afetadas pelas chuvas

Vanderson e outros integrantes da banda Manaká na Virada Cultural da Solidariedade. O evento em vários locais de São Paulo contou com tendas de coleta, recebendo doações para as regiões gaúchas afetadas pelas chuvas

Sara Bentes é uma cantora e compositora brasileira, conhecida por sua versatilidade artística e engajamento na inclusão de pessoas com deficiência. Ela nasceu com glaucoma em um estágio avançado. A musicalidade também foi despertada a partir do diagnóstico assim como Vanderson. Ela lembra que voltava cantando das salas de cirurgia: “Minha mãe tinha que me tirar da enfermaria para não acordar as outras crianças”. 

Atualmente, Sara é uma das artistas que realizam o "Show no Escuro", uma experiência musical e sensorial em que o público assiste à apresentação em completa escuridão. A ideia é proporcionar uma imersão na música, estimulando os outros sentidos e permitindo uma nova percepção do som e das emoções transmitidas pela performance. Ela não foi a inventora original desse conceito, mas tem se destacado por sua atuação e contribuição significativa para popularizar e desenvolver essa forma de apresentação.

O revolucionário dessa atitude é o convite para músicos videntes a alteridade; de se colocarem no lugar de profissionais cegos e entender um pouco da realidade deles. “A ideia é desafiar artistas que enxergam a performarem no escuro. Esse convite é reverso. A maioria do tempo eu preciso me adaptar a um mundo visual.” O "Show no Escuro" tem uma relação direta com o preconceito e o estigma enfrentados por pessoas com deficiência visual. Ao imergir o público em uma experiência na escuridão total, o show desafia os participantes a perceberem a música e as emoções sem o auxílio da visão. Ele ajuda a sensibilizar sobre as dificuldades e habilidades dos músicos cegos e a desestruturar o preconceito da sociedade com eles. 

O maior desafio relatado por Sara é a mentalidade da sociedade. “Vivemos em uma sociedade ainda moldada por uma mídia sensacionalista, que tende a associar deficiência com tristeza, dor e peso, ou, por outro lado, a tratá-la com espetacularização. Muitas vezes, pessoas com deficiência são retratadas superando a deficiência ao demonstrar habilidades, como cantar bem, como se uma coisa estivesse relacionada à outra. Ainda somos reféns de pensamentos retrógrados e ultrapassados, que possuem raízes históricas profundas.” Para ela, é fundamental desconstruir esses estereótipos e promover uma visão mais inclusiva e realista das pessoas com deficiência. Ela acredita que a mudança começa com a conscientização e a educação da sociedade.

Sara também participa desse ativismo fora dos palcos. Ela é a voz que orienta os eleitores com deficiência visual nas urnas eletrônicas no Brasil, oferecendo instruções em áudio durante o processo de votação. Essa iniciativa é fundamental para garantir que pessoas com deficiência visual possam exercer seu direito ao voto de forma independente e segura. A cantora conta que recebeu a notícia em seu aniversário: “Foi um presente maravilhoso e uma realização não só para mim, mas para toda a comunidade de pessoas com deficiência visual. Buscamos protagonismo e representatividade, e ter uma voz sintetizada a partir de uma pessoa com deficiência visual para promover autonomia e dignidade é a tradução mais clara de representatividade”. 

Foto: Divulgação/ Daniel Gomes

Foto: Divulgação/ Daniel Gomes