O corre delas é a corrida: a vida de mulheres motoristas

Elas rodam o Rio de Janeiro como Uber, taxista e “pilota” de ônibus

O início dessa história é muito parecido com a de qualquer motorista de aplicativo: “Eu trabalho na Uber e tenho um trabalho fixo, sou gerente de locação de imóveis”. O grande detalhe, que faz toda a diferença, é que o artigo que precede essa ocupação não é o comum “o”. A motorista Aline de Oliveira, de 45 anos, trabalha desde 2021 dirigindo para a Uber. Ela começou a fazer corridas para complementar sua renda e hoje usa o dinheiro que ganha para bancar o carro que é alugado e cobrir outras despesas. “Vale muito mais a pena”, diz. O que separa Aline da grande maioria de motoristas de Uber, além do seu gênero, é a clientela: ela só aceita corridas de outras mulheres.

Aline não é a única exceção nesse mundo de homens. Fabiana Nogueira, 43 anos, trabalha conduzindo ônibus pela cidade do Rio de Janeiro desde 2012: “Era um sonho dirigir”. Nesse trajeto, ela já enfrentou sinais verdes e sinais vermelhos. Ela agradece com um sorriso o apoio de mulheres que sobem em seu ônibus e ficam surpresas, felizes de encontrar na frente do volante alguém como elas. Muitos passageiros dizem que ela é “guerreira” e “corajosa”. Mas Fabiana também já escutou comentários de seus pares que queriam fazê-la frear: “Eles têm preconceito. Não são todos, mas alguns ficam incomodando. Falam que a mulher deveria estar dirigindo tanque, cuidando de casa”. Ela sabe bem como calar essas palavras venenosas, dizendo que, quando senta no banco e mostra “a diferença na direção, eles ficam quietos”. 

Na divisão dos “amarelinhos”, a narrativa também não é muito diferente. “Quando você está dirigindo e para no sinal do lado de um daqueles taxistas mais cascudos, e eles vêm que é uma mulher, chegam a rosnar. Fazem cara feia, e eu respondo bem debochada ‘Tudo bom colega, beleza?’” A paulista Lilian da Silva Franco, 45 anos, trabalha com o taxímetro ligado há dois anos. Ela dirige pelo ponto Táxi Rio Laranjeiras, mais conhecido como Táxi das Meninas. No bairro carioca das Laranjeiras, Lilian trabalha nos dias em que não atua como dentista. Esse é o “Ponto das Penélopes”, como ela apelidou, já que todos os motoristas que trabalham ali são, na verdade, as motoristas. Mulheres que dirigem seus carros amarelos vestidas de rosa. Os únicos homens que podem trabalhar no ponto são familiares das motoristas.

 As mulheres rodam, em sua maioria, durante o dia. E como muitas têm filhos, trabalhar de noite complicaria a dinâmica de casa. As corridas noturnas são feitas por associados: ”Eles têm que ter um vínculo com alguém. Um irmão, um primo, um marido, tem que ser de confiança”. É o que conta Patrícia Alves da Silva, 52, dizendo que não gosta de trabalhar à noite por uma “questão de segurança”, frase dita por todas as entrevistadas desta reportagem. Em um pontinho rosa no meio do Rio, os homens são exceção nesse mundo de mulheres. Com o barulho constante de buzinas e motores ao fundo, elas fazem da corrida o seu ganha-pão. Minorias na profissão, Aline, Fabiana, Lilian e Patrícia trabalham dirigindo, tomando as rédeas para si. Ou melhor, tomando o volante em suas mãos.

“Falam que a mulher deveria estar dirigindo tanque, cuidando de casa”
Fabiana Nogueira

O "Táxi das Meninas" vai na contramão dos pontos de táxi tradicionais

Aline Oliveira, a Uber

Para Aline, não há nada melhor do que dirigir para outras mulheres: “Eu fico aliviada e as clientes também”. Em seu aplicativo da Uber, Aline ativa a opção U-Elas, uma possibilidade para mulheres e pessoas não binárias para só receberem chamadas de passageiras.  “Quando comecei, eu pegava um público misto. Era complicado e perigoso. Hoje em dia é mais tranquilo por causa do U-Elas”, compartilha. Mesmo só aceitando corridas de mulheres, já aconteceu de Aline chegar no local de embarque e encontrar homens esperando. “Eu só pego quando a cliente me avisa que pediu o carro para um filho, sobrinho ou marido. Se não avisam, eu cancelo por questão de segurança mesmo.” Nesses casos, as motoristas podem cancelar a viagem sem que sua avaliação seja afetada. Aline compartilha também a reação das passageiras quando percebem que não é um homem no volante: “A maioria fala ‘Ah, que bom!’” 

Segundo levantamento feito pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), em 2023, mais de 1,6 milhão de brasileiros trabalhavam como motoristas ou entregadores de aplicativo. O estudo analisou dados de empresas como a Uber, 99 e iFood. Do total de motoristas, apenas 5% eram mulheres. No caso de entregadores, o número era ainda menor. Apenas 3% correspondiam ao público feminino. Mas no mundo da mobilidade urbana, as mulheres não ficam atrás só no trânsito. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2022, em atividades ligadas a Transporte, Armazenagem e Correio, apenas 20% dos cargos gerenciais eram ocupados por mulheres. Dentro desse universo, no final do mês, o grupo feminino recebia 51,2% do salário de seus pares homens. Ou seja, desempenhando o mesmo trabalho, as mulheres receberam praticamente metade do valor pago aos homens. 

No dia a dia da profissão, nem tudo são flores. Com as mãos sobre o próprio volante, Aline já se sentiu fora do controle. Em um tom de quem fala algo óbvio, ela diz que passou por “vários” momentos desconfortáveis dirigindo para o público masculino: “Já aconteceu de pegar uma corrida e entrar três homens e um querer sentar no banco da frente. Eu fiquei incomodada. Ou de chegar no local e ter pessoas estranhas entrando no carro”. Ela compartilha a insegurança que às vezes sente por trabalhar como motorista. “É perigoso nos dois sentidos: como mulher, e o perigo da rua mesmo. Hoje em dia não tem horário para acontecer qualquer coisa, principalmente como Uber.”

Aline costuma dirigir de noite, e de manhã pega corridas no percurso entre sua casa no Méier e o trabalho em Copacabana. Ela diz que trabalha até no máximo 2h da madrugada. “Eu não era tão medrosa assim, era totalmente destemida. Se fosse para ficar de madrugada na rua dirigindo, eu ficava. Mas depois que eu passei por um assalto e fiquei como refém, eu fiquei mais assim”, divide a motorista. “Posso até só pegar corridas de mulheres, mas tem mulheres que também assaltam. Como eu já fui assaltada por uma na minha casa. Mas risco sempre tem, eu fazendo Uber ou pegando ônibus.” 

“As pessoas dizem até hoje que sou corajosa ou então que sou maluca”
Aline Oliveira

A motorista de Uber escuta todo tipo de julgamento: “As pessoas dizem até hoje que sou corajosa ou então que sou maluca”. Apesar da preocupação, a família de Aline a incentivou em sua escolha incomum. De acordo com a pesquisa Datafolha realizada em abril de 2024, desde a chegada da empresa no Brasil há 10 anos, aproximadamente 6,2 milhões já dirigiram para a Uber. Apenas uma minoria era feminina. Em 2019, a empresa realizou uma pesquisa junto ao Banco Mundial. Dos 600 mil motoristas brasileiros ativos no aplicativo, 6% pertenciam ao gênero feminino. E do total de mulheres ouvidas, 64% disseram que a segurança era um dos principais desafios que as impediam de começar a dirigir pela empresa. 

Aline não conhece nenhuma mulher que trabalha como Uber: “Homens eu conheço alguns”. Atualmente, o aplicativo lançou o programa de incentivo Elas na Direção. O intuito é aumentar o número de parceiras na plataforma. De acordo com a empresa, “a Uber quer ser aliada de um número cada vez maior de mulheres, para que assumam a direção de suas vidas e sua autonomia financeira”. Assim, parceiras que indicarem novas motoristas ganham um adicional, uma média de 300 reais por cada nova mulher que entrar para a plataforma. Do outro lado da corrida, as passageiras ainda não têm a opção de escolher viajar exclusivamente com mulheres - função oferecida pela concorrente Lady Driver, por exemplo. De acordo com a empresa, esse é o objetivo final, mas ainda é necessário que a quantidade de motoristas mulheres aumente para que essa possibilidade seja viável.

O aplicativo Lady Driver pretende ser uma versão 100% feminina da Uber. O manifesto da empresa diz que foi a primeira a criar um ambiente em que motoristas mulheres podem “obter sua independência financeira” e com o “o grande diferencial que nenhum app oferece: a segurança!” Com mais de 100 mil motoristas cadastradas em 80 cidades do país, a Lady Driver funciona desde 2017. A empresa foi fundada por Gabryella Corrêa após ser assediada em uma corrida de aplicativo. Conversando com amigas, ela percebeu que sua situação não era extraordinária. Gabryella pensou então que se sentiria mais tranquila com uma motorista: e foi assim que idealizou seu aplicativo de mulheres, para mulheres. Hoje, as corridas também podem ser feitas para crianças e idosos. Mas a utopia ainda não está tão próxima.

No canal do Lady Driver no Reclame Aqui, comentários abordam as disfuncionalidades do aplicativo. Uma das reclamações cita o mecanismo de agendar viagens: “A ideia é boa, mas não funciona. E muitas vezes, quando aceitam o agendamento, cancelam pouco tempo depois”. O mesmo comentário diz que é difícil achar corridas na rua. Outra reclamação fala sobre o preço das corridas: “Pela segurança é legal. Mas parece que foi criado para um público alvo com dinheiro. Às vezes o que no Uber é 20 reais, no Lady Driver é o dobro”. Apesar das críticas, Gabryella planeja captar recursos para melhorar a interface do aplicativo. A empreendedora diz que têm planos de tornar o programa internacional: ela está em negociação para inaugurar o serviço em Portugal e já mira nos Estados Unidos.

No banco da carona, Aline de Oliveira também faz a vez de passageira da Uber. Ela diz que existem “motoristas mais tranquilos, outros mais abusados” e que “não tem como saber como vai ser a corrida antes do carro chegar”. A motorista já passou por momentos desconfortáveis quando não tinha as mãos sobre o volante. “Não passei por assédio, mas teve uma vez que o motorista mudou a rota. Eu falei para não mudar e ele fingiu que não estava escutando.” Preocupada, Aline mandou sua localização em tempo real para o marido: “Eu sempre faço isso, peço para ele ficar ligado e me acompanhar”. Essa é uma prática comum entre mulheres para se sentirem mais seguras viajando sozinhas. Vídeos na internet dão dicas, destacando a importância de se comunicar ou, pelo menos, simular uma conversa com terceiros, para indicar que a passageira estaria sendo esperada por alguém. Outras recomendações são ter um spray de pimenta na bolsa, não sentar no banco de carona, nem aceitar balas do motorista. E claro, a regra que é conhecida por praticamente todas. De noite, se a mulher está em uma corrida com amigos, ela nunca deve ser a última a ser deixada em casa. É importante frisar: para fazer uma simples corrida sozinha, há basicamente uma cartilha de segurança para mulheres. São compartilhadas estratégias para que elas tentem se blindar ao máximo contra riscos que o motorista pode oferecer. Seja ela uma jovem de 15, ou uma mulher adulta de 45 anos como Aline. Não tem idade mais segura para ser uma mulher.

“Mulher pede corrida por aplicativo e é estuprada pelo motorista em Londrina”; “Motorista de app é preso por estupro contra passageira adolescente”; “Justiça mantém prisão de motorista de Uber acusado de estupro”; “Estupro em carro de aplicativo: Uber desativa conta de motorista do DF”; “Motorista de aplicativo é preso suspeito de estuprar passageira que tinha como destino UPA, diz polícia”; “Motorista de app muda rota, apalpa passageira e manda tirar a roupa em Camboriú, diz PM; vítima escapou”.

Essas são algumas das manchetes mais recentes de casos de assédio sexual e estupro envolvendo motoristas de aplicativo. A preocupação, que quase beira a paranoia, de mulheres que fazem corridas sozinhas não é infundada. Um dos casos que mais chocou o Brasil no ano passado foi o de uma jovem mineira de 22 anos. Ela voltava de um show depois de ter passado mal devido à embriaguez, e chegou desacordada em seu destino final. O motorista da 99 a deixou inconsciente encostada a um poste no meio da madrugada. Cinco minutos depois, um homem se aproxima da mulher e a carrega nas costas. A jovem foi encontrada pela manhã desacordada e com a calcinha abaixada. Exames confirmaram a suspeita de estupro. Não é difícil de entender o tal “alívio” que as passageiras de Aline demonstram quando entram em seu carro.

Ao final de cada corrida, o passageiro pode deixar comentários e avaliações no perfil do motorista. Aline acumula 48 medalhinhas de “Ótimo Atendimento”. Entre os comentários elogiosos, dois se destacam: “Simpática e atenciosa! Girl Power” e “Adorei pela primeira vez ter uma mulher como motorista no Uber”. Para além dos momentos de sufoco, Aline compartilha memórias boas que viveu andando pelas ruas do Rio. Uma vez, ela pegou uma corrida com uma criança autista: “Ela entrou em um carro diferente, que não estava acostumada, e começou a berrar”. Formada em Pedagogia, Aline foi conversando com a criança e a acalmando. “Tem situações que são bem gratificantes”, lembra a motorista, já que dirigir, mesmo que mecânico, é um trabalho humano.

Fabiana Nogueira, a “pilota”

O dia de Fabiana começa cedo. Logo quando a madrugada passa a ser dia, ela já está no ponto final do Cosme Velho para começar sua jornada. Motorista da linha circular 584 da empresa Braso Lisboa, ela para em 65 pontos nas duas horas que leva até chegar ao Leblon. Laranjeiras, Flamengo, Botafogo, Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon, Jardim Botânico, Botafogo e Laranjeiras, para chegar novamente ao Cosme Velho. Rodando a Zona Sul pela manhã, Fabiana vê famosos cartões postais do Rio pelas janelas do seu ônibus. Cristo, Pão de Açúcar, orla… Não à toa, pode sempre contar com passageiros torrados de sol vestidos de camisas floridas e bonés. Os gringos que visitam o Corcovado sempre marcam presença: muitos argentinos e outros companheiros latinos, além de americanos e europeus salpicados. A vista pode até ser bonita, mas o trabalho não é fácil: “É pesado. Oito horas trabalhando direto, faço quatro viagens sem pausa. Chego 5h da manhã no ponto e acabo 13h”.

O turno de Fabiana é marcado pelo forte ronco do motor e do girar das catracas. As portas abrindo e fechando a cada ponto, o barulho da seta ticando e o sinal de parada zunindo incessantemente. Entre um “Bom dia” sorridente e outro, os olhos focados no trânsito. “Para ficar bem claro, a nossa profissão não é valorizada”, declara Fabiana. “O motorista tem que lidar com dinheiro, isso é chato pra caramba. É uma dificuldade para a gente dirigir, cobrar e prestar atenção na rua.” Com o costume, ela já deixa as moedas separadas para facilitar na hora do troco. “Pessoas ficaram desempregadas e ficou mais cansativo para os motoristas. E a gente só recebe por um trabalho”, lembra Fabiana. Enquanto faz as contas do troco antes de colocar o pé no acelerador, ela conta que ingressou no mundo do trânsito como cobradora. 

Em 2012, depois de trabalhar em um supermercado, ela decidiu mudar de área. Aproveitou que precisava renovar a carteira de habilitação e fez uma ousadia: trocou pela categoria “D”.“Trabalhei como trocadora, fiz treinamento em Niterói e consegui passar para motorista.” Quatro anos depois de assumir o banco da frente, a profissão de cobrador foi extinta. Ela relembra o início de tudo: “Eu tive bastante elogio no começo. Muita gente me parabenizando, falando que sou guerreira, corajosa”. Antes de trabalhar em sua linha atual, a motorista passou pela 474, que liga o Jacaré e Copacabana. “Saí porque era muito abuso”, desabafa Fabiana. “Muitos passageiros não respeitavam. Subiam no teto, ameaçavam a gente. Era muito vandalismo.” Ela compartilha diversos casos de roubo, que às vezes envolviam a polícia. Em menos de um ano na linha, pediu as contas: “Eu não aguentei”. Hoje em sua quinta empresa, Fabiana diz que a maioria das reações de quem sobe em seu ônibus é positiva. “É isso aí, nós mulheres estamos tomando conta!”, comentou uma passageira. “Eu gosto do que faço. Em nome de Jesus, me vejo aposentando aqui”, diz.

Diferente de Aline que não conhecia nenhuma Uber, Fabiana conhece várias “pilotas” de ônibus: “Conheço um monte de motorista mulher. Elas gostam do que fazem e dirigem bem”. Por parte de alguns companheiros de profissão, recebe comentários machistas, dizendo que as mulheres não pertenceriam ao volante. E Fabiana defende que, realmente, há diferenças entre homens e mulheres na hora da direção. Mas não essa “incapacidade” que eles cismam em acusar. “As mulheres têm mais cuidado e preocupação. Os homens são mais apressados. Se for olhar a estatística, são eles que causam mais acidentes.” Será mesmo? E o ditado “Mulher no volante, perigo constante”?

De acordo com um estudo da Unicamp de 2022, encomendado pela empresa ZigNET, a maior parte dos acidentes envolvia o gênero masculino. O maior índice de ocorrências foi causado por motoristas entre a faixa etária dos 18 aos 39 anos, com o público masculino liderando os números. Entre os meses de junho de 2021 e 2022, foram registradas 183% mais colisões causadas por homens do que por mulheres. E nos casos de colisão traseira, por exemplo, os acidentes provocados pelo público masculino representavam mais do que o triplo do que aqueles causados pelo feminino. Fabiana estava certa. Pelo visto, o ditado prescreveu. E, para fazer jus à sua destreza e cuidado na direção, Fabiana poderia sim pilotar um tanque. Um tanque de guerra. 

Patrícia, a taxista

Em dois anos como taxista, Patrícia Alves da Silva só passou duas semanas fora do Táxi das Meninas. Ela não gostava do lugar em que estava trabalhando, até que um dia viu passageiros saltando de um carro amarelo em seu condomínio. No banco do motorista, uma mulher vestindo blusa rosa. Correção: no banco da motorista. Com ela, Patrícia pegou a indicação e partiu para Laranjeiras. “Eu me encontrei aqui. A gente se dá bem e gosto da dinâmica do ponto. Só tem menina, todo mundo com a mesma vibe, sabe como é que é”, diz com um sorriso leve no rosto. A razão de Patrícia não ter gostado do outro ponto em que trabalhou é muito simples: “Era em Santa Tereza”. Ela ri, dizendo que era mais difícil, já que “sobe e desce muita ladeira”.

Quando ficou desempregada em 2019, Patrícia procurava por um trabalho com flexibilidade: “Eu não queria mais voltar para CLT”. Ela conta que no ponto faz a sua hora, sem “plantão, nem muito horário”. Como nas histórias contadas nesta reportagem, sua família demonstrou preocupação com a mudança de direção profissional. A questão da segurança também foi um ponto levantado. “Mas hoje os parentes já estão acostumados. Meu marido agora ficou desempregado e está trabalhando de táxi também.” O ponto com quase 30 motoristas mulheres, que se consolidou depois da pandemia, já tem clientela fidelizada. Patrícia mostra que a atenção aos detalhes é um ponto ganho para as mulheres. “Os homens elogiam, dizem que o carro é mais limpo, mais ajeitado. E a gente tem sempre o ar-condicionado ligado”, comenta. “E quando é passageira mulher, elas gostam ainda mais. Se sentem seguras.”

Pelas ruas, Patrícia sofreu a batida da rejeição: “Já aconteceu de a pessoa me ver e não querer pegar o meu carro. É raro, mas acontece”. Pensando sobre o motivo por trás do comportamento, ela chega à conclusão que foi por “preconceito mesmo”. Enquanto ela compartilha sua experiência, o ponto que estava vazio no final da manhã de uma segunda-feira começa a receber mais carros. As mulheres começam a manobrar e entrar nas vagas, deixando aquele cantinho da rua das Laranjeiras mais colorido: o amarelo dos táxis e o rosa chiclete dos uniformes alegra o espaço. Naquela terra de mulheres, elas reinventaram a imagem clássica de um ponto de táxi, lotado de homens fumando e suando, com os botões da camisa presos às casas erradas, que competem pelos clientes. Até o sol brilhava mais forte naquelas vagas. O clima era leve, acolhedor. É perto do horário do almoço quando a paulista com longos cabelos pretos chega. Lilian começa a conversa respondendo como os portugueses. Direta. Bem ao pé da letra. Sem dar informações além da solicitada. Aos poucos, ela vai deixando suas frases mais longas, com gestos e expressões bem paulistanas, com “meu” costurando as anedotas que conta. Se antes foi difícil fazê-la falar, agora era difícil achar ponto de corte. 

Lilian, a taxista

Lilian odiava taxistas. Uma vez, chegando no Aeroporto Santos Dumont, colocou as bagagens no porta-malas de um táxi e iniciou a corrida. Quando disse que ia para a UERJ, no Maracanã, sentiu o carro frear. “Eu não vou para comunidade”, disse o homem, que a deixou no meio da rua. Ela cultivava um desgosto por taxistas até conhecer seu marido e o carro dele: amarelo com uma listra azul marinha. Advogado, ele trabalhou por 32 anos dirigindo. Hoje, os dois juntos têm quatro táxis. 

A paulista chegou em terras cariocas há seis anos, depois de passar em um concurso público como dentista. Aqui ela comprou um táxi, “a nível de investimento”, e o alugava, por ter medo de dirigir pelas ruas da cidade. “Depois da pandemia, as coisas começaram a ficar difíceis”, conta. “A maioria dos consultórios fechou. Vi meu salário reduzido pela metade, só que as contas continuavam chegando. Eu peguei o táxi e comecei a trabalhar.” Em 2022, ela comprou uma vaga no Norte Shopping, onde estavam registrados outras sete mulheres e 150 homens. Depois de um ano, dirigindo até depois das 22h e se sentindo “exposta ao risco”, decidiu que não precisava mais estar vinculada a um ponto. 

Com o tempo, Lilian foi sendo conquistada pelo táxi: “Foi o que me proporcionou conhecer lugares que nem pessoas que moram aqui conhecem”. Ela gostou tanto do trabalho que mostra “outros mundos dentro da mesma cidade”, que iniciou uma amiga nessa vida também. Foi por indicação dessa colega que entrou mais tarde para o Táxi das Meninas. Hoje, Lilian soma três meses de uniforme rosa. Ela conta que a maior parte das motoristas do ponto são “herdeiras do táxi”, em que pelo menos um homem da família já trabalhava no ramo antes de decidirem dirigir. No caso de Lilian, pelo menos, essa regra parece válida. Ela nunca pensou em trabalhar como Uber. Seu “não” foi reto e final. “É desumano”, aponta. “Se trabalha muito para ganhar pouco. No começo dava dinheiro, mas agora virou saturado.” Quando ainda morava em São Paulo, Lilian também tinha um carro que alugava para um motorista de Uber: “Ele tirava uma grana, mas trabalhava 15 horas de madrugada”.

Ela conta que as motoristas penélopes já estão ficando conhecidas no bairro: “A gente é privilegiada por outras mulheres, mesmo porque ainda somos poucas no mercado”. As clientes falam que “mulher tem que se unir, dar apoio a outra mulher”. Lilian defende que “deveriam ter outros pontos iguais a esse”, dizendo que há uma grande demanda por mais motoristas femininas. A paulista também está cadastrada nos aplicativos Táxi Rio e 99: “Eu tenho notado que estão linkando mulher com mulher. Eu quase não pego homem”. Apesar da sororidade e de avanços, a profissão continua sendo extremamente masculina: “Infelizmente o machismo impera muito, mesmo sendo um trabalho igual a outro qualquer”.

Lilian já ouviu muitos comentários vindos de homens enquanto trabalhava. Mas com seu jeitão de quem não engole sapo, nunca deixou barato: “Quando o passageiro começa a passar do limite, já mando assim ‘Meu marido também acha’”. Ela conta que nunca ouviu nada ofensivo, só comentários “light”, falando como ela era bonita ou perguntando se o marido sentia ciúmes por ela trabalhar em táxi. Sobre os companheiros de profissão, Lilian diz que eles “sentem raiva” das mulheres motoristas: “Eles devem achar que a gente tá tirando o lugar deles. Mas o sol brilha para todo mundo, tem passageiro para todo mundo”. Ela compartilha que, às vezes, ouve velhos xingamentos, como “Volta para a cozinha!” ou “Mulher tem que estar em casa cuidando do filho”. Mas Lilian não se abala: “Muitas das vezes a gente ganha mais do que eles, e ganha mais por simpatia”.

Nos tempos de Norte Shopping, Lilian esperava sua vez para pegar um passageiro quando ouviu um de seus companheiros balbuciar: “Você deve ser uma merda de dentista para ter que estar no táxi hoje”. Enquanto os outros taxistas o repreendiam, a resposta de Lilian veio rápida: “Você é auxiliar, não é? A merda da dentista comprou o carro à vista”. Ele achava que a paulista era auxiliar como ele, uma pessoa que roda com o carro para o dono da vaga. Mas, na verdade, ela era a proprietária. “Eles acham que a gente é besta, sabe? Que não tem capacidade. Menosprezam, sendo que eu estava ganhando o meu dinheiro sem atrapalhar ninguém”, compartilha. Ela desabafa falando que “ninguém trabalha porque quer, trabalha porque precisa” e que “as pessoas preferem julgar a conhecer a história de alguém”. 

Antes de dirigir no Rio, Lilian já atuava na área de transportes em São Paulo. Ela trabalhou em uma cooperativa de ônibus, que assumiu depois da morte do pai. “Era um mundo muito masculino. Tive que bater de frente para impor o meu lugar.” Ela cita dificuldades de assumir o comando, e conta da vez em que os funcionários fizeram uma reunião em uma sauna: “Era para todo mundo entrar pelado. Como eu ia participar?” A empreendedora também já administrou uma lava jato, em que era a única mulher entre 18 trabalhadores. Nessa ocasião, Lilian foi chefe de homens mais velhos do que ela, que não respeitavam sua autoridade. “Como pode uma pivete que nem você me dar ordem? Uma menina!”, disse um dos funcionários. Entre motores e machismo, Lilian entende que enfrentou tanta dificuldade porque os homens não “aceitam uma mulher comandar”. 

A motorista reconhece que muitas pautas femininas já avançaram, mas avalia que “ainda há muita barreira para quebrar”. Uma diferença em específico a incomoda: “Em pleno século XXI, a gente ainda ganha menos do que o homem. E às vezes faz um serviço melhor, mais humano. A mulher tem capacidade de fazer dez coisas ao mesmo tempo”. Para ilustrar seu argumento, ela evoca a figura de uma mãe. “Trabalha fora, cuida da casa, cuida dos filhos. E o marido faz o que quando chega em casa? Senta no sofá com o controle e fica mudando de canal.” A linha de pensamento de Lilian é interrompida bruscamente quando ela é chamada para mais um corre, mas suas ideias não morrem ali.


“Em pleno século XXI, a gente ainda ganha menos do que homem” - Lilian

“Em pleno século XXI, a gente ainda ganha menos do que homem.” - Lilian

"Em pleno século XXI a gente ainda ganha menos do que homem" - Lilian

"Em pleno século XXI a gente ainda ganha menos do que homem" - Lilian

Luz no fim do túnel

O início dessa história pode até ter começado com a presença feminina como exceção. Como uma ínfima porcentagem em uma maré de homens. Mas aos poucos Alines e Patrícias começam a mudar a narrativa vigente. Fabianas e Lilians forçam a noção estereotipada do que é ser alguém que trabalha com a direção. Como disse Fabiana: “Hoje a mulher não está perdendo para o homem em mais nada. Até em moto e caminhão. É legal ver isso”. Lilian conta também dos planos para aumentar o ponto: “Todas as mulheres são bem-vindas”. Quem sabe, no futuro, essa história tenha um final diferente.

"O" ou "A"?

Na feitura desta matéria, o corretor automático sugeriu diversas correções “gramaticais”:

- A correção de “da motorista” para “do motorista”. 

- A correção de “das próprias motoristas” para “dos próprios motoristas”.

- A correção de “novas motoristas” para “novos motoristas”.

- A correção de “motoristas cadastradas” para “motoristas cadastrados”.

- A correção de “nenhuma Uber” por “nenhum Uber”.

- A correção de “as motoristas, conhecidas” para “os motoristas, conhecidos”.

Paranoica

A entrevista de Aline foi feita durante uma corrida real. Eu estava indo para uma festa e chamei um Uber. Sairia sozinha à noite e, em menos de 1km, dois amigos se juntariam a mim. Apesar de ser uma distância curta até eles, senti meus músculos tensos enquanto chamava a corrida. Entrar em um carro com um motorista é como apostar na sorte: não se sabe quem vai encontrar. Quem teria as mãos sobre o volante não estava preso ao caminho do GPS. Mesmo que o aplicativo indicasse a parada, ele não necessariamente diminuiria a velocidade ao chegar no local marcado. Esse nervoso durante corridas de aplicativo não era estreante; ele foi a razão de eu ter vestido um casaco em uma noite quente para esconder o meu decote, foi a razão de eu sempre planejar a ida e a volta de festas para não ficar sozinha no carro. Já tinha experienciado o coração pular para fora do peito uma vez, quando o motorista cismava em querer mudar a rota. Desde então, essa ansiedade era corriqueira antes de uma corrida.

Mas o prédio onde eles me esperavam ficava entre o destino final e a minha casa: sair sozinha e pegá-los no caminho era o mais lógico. O medo que eu sentia não me parecia lógico. Uma distância tão curta, uma preocupação imensa. Mesmo assim, decidi engolir a inquietação e não criar caso. Assim que o telefone piscou indicando que havia achado um motorista, senti os nós nos meus ombros se desfazerem: Aline! Então seria uma motorista que nos levaria. O alívio tomou conta. Uma motorista mulher realmente acalma nossos ânimos. Fui gravando a nossa conversa até o ponto onde eu encontraria os meninos.

Um deles abriu a porta de trás e veio se sentar ao meu lado. O outro, quis sentar na frente. Pela gravação, percebo como a voz de Aline mudou: antes tranquila, logo se tornou mais aguda. Ela não gostava que um homem se sentasse no banco da carona, como havia me contado. Eu logo o chamei para sentar atrás conosco. E foi assim que percebi que o medo que me percorreu minutos antes, agora era sentido por Aline: com 18 anos, me sentia insegura para fazer uma corrida sozinha com um homem. Com 45 anos, Aline se sentia insegura de ter um homem desconhecido tão próximo enquanto dirigia. Compartilhamos do mesmo medo, que não é paranoia. Apenas a consciência dos riscos a que estamos expostas como mulher se manifestando em nosso corpo.