Nem só de amor se (sobre)vive

Abrigos, ONGs e protetores de animais enfrentam várias dificuldades para se manterem

Foto: Sophia Cunha

Foto: Sophia Cunha

Ser escravizado, atropelado e abandonado ainda criança. Essas são cenas que, infelizmente, poderiam acontecer com qualquer pessoa vulnerável socialmente. Porém, elas não foram vividas por humanos, mas sim por outros seres também sentimentais: os animais. Depois de serem resgatados, Arianna, uma égua, Rajada, uma cadela, e Amora, uma gata, tiveram uma vida muito melhor. Contudo, se engana quem acha que a partir daí só vieram maravilhas. Os desafios continuam. Mantê-los bem cuidados não é fácil, principalmente, com a falta de financiamentos, de políticas públicas e de outros tipos de apoio.

Arianna

Era explorada e maltratada por um carroceiro. Foi resgatada junto com a sua potrinha, Thalita, pelo Grupo de Ação, Resgate e Reabilitação Animal.

Amora

Foi abandonada pelos donos com apenas dois anos de idade e resgatada pela protetora do Gatil Pegadas de Amor.

Rajada

Foi atropelada e, por conta da lesão medular causada, usa duas órteses nas patinhas. Hoje, a mascote do Abrigo João Rosa consegue andar graças à acupuntura

“A história dessa casa é de muita dificuldade”, lamenta Simone Rentroia, de 58 anos, fundadora do Gatil Pegadas de Amor e advogada especializada em Direito Animal. A adversidade enfrentada nesse abrigo, não é um caso isolado. De acordo com dados do Instituto Pet Brasil (IPB), em 2020, existiam mais de 184.960 cães e gatos acolhidos por abandono ou maus-tratos nas mais de 400 ONGs identificadas. Na tragédia do Rio Grande do Sul, por exemplo, mais de 12,5 mil animais domésticos e silvestres -como o cavalo caramelo- foram resgatados, de acordo com a Defesa Civil. Porém, o cuidado não termina nesse momento. Depois disso, há uma luta diária de protetores para proporcionarem o bem-estar animal.

Cuidar de qualquer vida envolve muito amor e caridade. Mas, infelizmente, isso não consegue suprir tudo o que é necessário para manter os animais. Ração, remédio, veterinário, aluguel, funcionários, água, luz… O principal problema das ONGs e abrigos é financeiro: “Nossa média de custo é de 120 mil reais por mês”, conta Alexia Knopf (34), jornalista e diretora do Grupo de Ação, Resgate e Reabilitação Animal (G.A.R.R.A). Hoje, eles têm seis funcionários fixos assalariados. São divididos entre um sítio no Rio de Janeiro e um haras em São Paulo, somando mais de 300 cães, 36 cavalos, 150 gatos, além de patos, galinhas, ovelhas e jumentos para cuidar. As contas não fecham. E os animais precisam de apoio.

Garrincha sendo alimentado com feno. Vídeo: Sophia Cunha

Garrincha sendo alimentado com feno. Vídeo: Sophia Cunha

Acaba que algumas prioridades precisam ser estabelecidas. “Existem coisas que não podem parar no abrigo. Independente do que esteja acontecendo e de quanto a gente estiver ganhando, os animais não podem ficar sem comer”, afirma Beatriz Reis (35), voluntária do Abrigo João Rosa (AJR) e professora de Filosofia. Muitas vezes, tratamentos que melhoram a qualidade de vida deles precisam ser deixados de lado. “A gente vive única e exclusivamente de doação, não temos ajuda do governo. A realidade financeira e de espaço físico são muito difíceis de lidar todo dia.”

O espaço dos abrigos precisa ser pensado para cada situação dos animais, com o objetivo de evitar brigas, transmissão de doenças e de seguir a especificidade de cada um. O gatinho Vini, por exemplo, está com esporotricose, enfermidade muito comum entre os gatos e, por isso, fica na área de tratamento do G.A.R.R.A. Animais recém-castrados também precisam de atenção especial, o que, muitas vezes, segundo Simone, programas da prefeitura desconsideram: “Não adianta ele ser castrado e ser largado. Ele vai morrer ou vai ficar com os pontos inflamados”.

Gatinho Vini foi resgatado com uma ferida séria na cabeça. Testou positivo para FeLV e está com esporotricose / Foto: Sophia Cunha

Gatinho Vini foi resgatado com uma ferida séria na cabeça. Testou positivo para FeLV e está com esporotricose / Foto: Sophia Cunha

O G.A.R.R.A conta com vários canis separados. “É quase um quarto e sala”, compara Alexia. No AJR, alguns dos 35 são de piso, para o conforto dos animais. Penninha é um dos cachorros que precisam desse ambiente. Um atropelamento enquanto ainda era filhote fez com que ele perdesse o movimento traseiro e, posteriormente, por conta de machucados, as patas tiveram que ser amputadas. Ficar no chão normal traria muitos ferimentos a ele. Muitos lugares não conseguem ter toda essa estrutura. Alguns têm que criar os animais todos juntos. “Muitas pessoas romantizam os abrigos como um local aberto e livre”, diz Beatriz. O G.A.R.R.A é um dos raros exemplos que conseguiram ter um espaço mais amplo.

Penninha precisa de um canil específico / Foto: Instagram

Penninha precisa de um canil específico / Foto: Instagram

O abandono de animais nesses lugares também é um desafio. “Da última vez -eu até tenho medo de falar- deixaram 11 filhotes”, menciona Simone. Justamente por isso, os abrigos costumam pedir que seus endereços não sejam divulgados. Apesar de quererem ajudar todas as vidas, nem sempre é possível manter todas. No coração de mãe sempre cabe mais um, mas, depois do resgate, as ONGs devem se comprometer em garantir o bem-estar animal e isso não costuma acontecer quando há superlotação.

Às vezes, fica impossível atender a todas as solicitações de resgate. O G.A.R.R.A tem a política de só aceitá-las quando há espaço para novos bichinhos viverem de maneira digna. Nem todos entendem isso: são em média 200 mensagens recebidas por dia. “Mandam só tragédia. Eu acho uma maldade com a gente, sabem que a gente está lotado, temos mais de 400 animais e ficam lá bombardeando o Instagram”, relata Alexia, que cuida da mídias sociais. “As pessoas precisam ter consciência e ajudar as ONGs e não empurrar mais problemas para elas.” 

Beatriz expõe que algumas pessoas acham ser obrigação deles aceitar o animal: “Se você meteu a mão, a responsabilidade é sua. E as pessoas têm mania de querer passar para terceiros”. Nem sempre é viável ajudar a todos. “Se elas não podem colocar em algum lugar, dá um prato de comida e água naquele dia. É o que você pode fazer? Então faz.” Ela acrescenta que muitos não entendem que quando alguém deixa um ser amarrado na porta deles, quem está abandonando é essa pessoa, não o abrigo.

Falta de apoio governamental e de políticas públicas

Serafim está se recuperando de machucados que deixaram seus ossos expostos / Foto: Sophia Cunha

Serafim está se recuperando de machucados que deixaram seus ossos expostos / Foto: Sophia Cunha

No começo, a Secretaria Municipal de Defesa e Proteção Animal vacinava os cães do Abrigo João Rosa contra a raiva, mas, hoje em dia, eles preferem deixar esse auxílio para quem precisa mais. Outros lugares, como o Gatil Pegadas de Amor, nunca receberam ajuda governamental. Atualmente, nenhuma das três casas recebe qualquer amparo financeiro público, de empresas ou de instituições. Por isso, a dependência é sempre das doações recebidas.

Assim como acontece em outros setores, a exemplo da educação e da cultura, Alexia acredita que as instituições de proteção animal também deveriam receber incentivos fiscais: “Além de ajudar os animais, a gente também ajuda a população, porque a gente faz um controle de zoonoses, tira os que estão doentes da rua. Cuidamos da saúde pública”.

Simone diz que apesar de tentar uma contribuição política, ela nunca foi atendida. “Eu fiz a campanha de um político e ele ganhou absurdamente aqui na Zona Norte. Ele nunca deu para cá uma ração”, relata indignada. Ela mesma já propôs um projeto de lei como o já vigente em Santa Catarina, em que comedouros de PVC são implementados para alimentar animais em situação de rua. Mas não teve sucesso. “A gente não pode só ficar esperando isso, se não está todo mundo aqui passando fome.” 

No município do Rio de Janeiro, apesar de existirem, as políticas públicas costumam não ser tão interessantes, de acordo com a advogada Karine Fontes, pós-graduada em Direito Animal. “Então poucos protetores de animais as utilizam”, afirma. A obrigatoriedade do Registro Geral do Animal, por exemplo, um decreto promulgado no ano passado, pode ser quase impossível de ser seguido completamente. 

A intenção do governo é, por meio da identificação na plataforma Sisbicho, ter ciência de quantos animais existem e, dessa maneira, conseguir fazer um controle de zoonoses, além de protegê-los. A Prefeitura disponibiliza esse serviço gratuitamente. Na opinião de Simone, esse procedimento é contraditório: “Eu, particularmente, como protetora, acho isso uma palhaçada. Eles não ajudam os animais, só em campanha política. Para que saber o número de animais se eles não cuidam deles? Essa lei vai ficar no papel”. 

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COMO AJUDAR

Abrigo João Rosa

Chave PIX: 20.444.260.000-163

Apoia-se: https://apoia.se/abrigojoaorosa?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAab_4MNEcVB9NGm4u9_f4ppXaqX3MI9wKzdbraEgx_nBQZMu2MS1EtcQObg_aem_t4HsBaAEl9Ecr2sGOgxmyA

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Gatil Pegadas de Amor

Chave PIX: ygor.rentroia@outlook.com.br

Para adoção contatar: (21) 97523-8821

G.A.R.R.A

Chaves PIX: pixdogarra@gmail.com OU onggarra@gmail.com OU (21) 98024-1232 OU 35.880.476/0001-49

Apoia-se: https://apoia.se/garra?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAaY15SKbIT8aWwfGcLpCUULN_I-FbM1K-dG2apxC25Q54B7l60A6Hf8UCfk_aem_UE-EtgJapApDrfTs0X9_vg

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Por via das dúvidas, desde antes da lei, no G.A.R.R.A, todos têm esse registro. Antes, o Abrigo João Rosa não realizava o procedimento, já que não era obrigatório. “Agora que é, a gente está estudando como iremos fazer, porque não é uma logística fácil.” Para Beatriz, a situação seria diferente se um profissional fosse até eles para registrar os cães: “A gente teria que combinar, até porque nem todos são sociáveis. Precisaríamos de uma logística de transporte que é quase inviável para a gente”.

Para Simone, outras leis são mais importantes: “A apreensão do agressor por maus-tratos também não funciona, mas essa sim tinha que ser eficaz!”, argumenta. “O cara vai na delegacia, faz uma transaçãozinha penal e continua batendo nos bichos. Fora as outras coisas que é muito pior do que bater.” Beatriz narra a história da “Casa dos Horrores”, o caso mais sério que já chegou ao abrigo. Os cachorros foram abandonados por tanto tempo que passaram a comer as carcaças dos já mortos.

Os três cachorros caramelos estavam na casa em situações lamentáveis. Já seus companheiros de canil são Grude, Mateo e Pumba (um dos cachorros adotados filhotes e devolvidos já em uma idade não propícia para achar um novo tutor) / Foto: Sophia Cunha

Os três cachorros caramelos estavam na casa em situações lamentáveis. Já seus companheiros de canil são Grude, Mateo e Pumba (um dos cachorros adotados filhotes e devolvidos já em uma idade não propícia para achar um novo tutor) / Foto: Sophia Cunha

Embora haja furos na legislação, Karine destaca que grandes avanços já foram conquistados e esforços estão sendo tomados para melhorá-la, como é o caso do PL 723/2023, em tramitação na Alerj. Por meio dessa lei, incentivos fiscais seriam destinados para a manutenção de instituições protetoras atuantes no estado. “O número de simpatizantes da causa animal tem crescido bastante em todo o país. As redes sociais também têm desempenhado um importante papel nessa missão de sensibilização”, pondera a advogada, destacando que a comoção e mobilização pública no Rio Grande do Sul para salvar os animais mostrou isso.

Outro programa de assistência é o Bicho Rio, da Secretaria Municipal de Proteção e Defesa Animal. Nele, os Protetores Voluntários de Animais e Protetores de Colônias de Animais podem se cadastrar a fim de terem acesso ao atendimento veterinário, à esterilização e à microchipagem de cães e de gatos. Além disso, em Irajá, na Zona Norte do Rio de Janeiro, está sendo construído um novo Hospital Municipal Veterinário, com inauguração prevista para o terceiro trimestre deste ano.

Em outras localidades, existem algumas leis vigentes que pretendem ajudar os animais. No caso de Maricá, há o projeto Mumbucão. O nome faz alusão à moeda própria do município, a Mumbuca, que, dentro do programa criado em 2022, é usada para beneficiar financeiramente o trabalho de protetores. Em Duque de Caxias, há um banco de rações e outros utensílios desde o final do ano passado, com direito ao troféu “Empresa Amiga do Animal” para as companhias da cidade que mais doam e oferecem apoio. 

Já na Prefeitura de Saquarema, há também, desde 2023, um banco de rações para animais de pequeno porte, administrado pela Secretaria Municipal dos Direitos dos Animais. Na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ainda está em tramitação o PL 1375/2019, que prevê instituir o “Sistema Banco de Ração” destinado às ONGs e aos protetores independentes.

Foto: Felipe Scot

Foto: Felipe Scot

Para Karine, o atual Código Civil de 2002 contribui para que algumas leis asseguradoras do direito animal ainda não tenham sido feitas. O artigo 82 ainda é usado para prever a natureza jurídica deles. Nele, os bichos são vistos como bens semoventes (“coisa” passível de movimento), mas não como um ser senciente de direito, ou seja, que tem sensibilidade. Essa norma ainda não foi modificada. Entretanto, durante a revisão desse regulamento, iniciada em agosto de 2023, discutiram-se revisões favoráveis ao direito animal, que estão em trâmite no Senado. “Estamos acompanhando esse projeto de reforma com bastante ansiedade”, expressa a advogada.

Processo de doação e apadrinhamento

Thalita, filha de Arianna. Sempre dá um sorriso para as pessoas ao redor dela / Foto: Sophia Cunha.

Thalita, filha de Arianna. Sempre dá um sorriso para as pessoas ao redor dela / Foto: Sophia Cunha.

Enquanto as políticas públicas vão caminhando lentamente, alternativas, além da doação, são encontradas para arrecadar dinheiro. O G.A.R.R.A tem uma loja virtual na Petz em que uma parte da compra é revertida para eles. “Acaba também sendo uma forma de ajudar”, diz Alexia.  Além disso, eles e o Abrigo João Rosa vendem produtos próprios personalizados: “Apesar da gente gastar dinheiro, a gente consegue um retorno e o lucro é todo revertido para os cuidados”, revela Beatriz.

Todas as doações e despesas são explicitadas em um portal de transparência e as contas são prestadas nas redes sociais. Quem gere o dinheiro são as diretoras e responsáveis. Simone relata também serem poucas as contribuições para o Gatil Pegadas de Amor: “Hoje, infelizmente, as pessoas estão muito preocupadas em quanto elas vão ganhar (em troca), mas isso não faz parte do doar”.

Doações para o Abrigo João Rosa / Foto: Sophia Cunha

Doações para o Abrigo João Rosa / Foto: Sophia Cunha

O apadrinhamento e o clubinho da ração são campanhas do Abrigo João Rosa para conseguir arrecadar fundos. Na primeira, a partir de 30 reais mensais, você escolhe um cachorro para ajudar. Já na segunda, com 25 reais você ajuda a pagar o boleto da ração. No G.A.R.R.A, há o Apoia-se, em que a pessoa pode doar por mês no cartão de crédito a quantia que quiser. O número de doadores fixos caiu bastante: “Temos 300 e pouco. Já tivemos 600”.

Os lares temporários são uma forma encontrada de driblar a superlotação ou dar lugar para filhotes, recém-operados e doentes. Esse é o caso de Isabelle Mendes, professora de 27 anos, e Rodrigo Mendes, contador de 41 anos. No dia da entrevista com a voluntária do Abrigo João Rosa, eles estavam transferindo Lili do LT para a adoção. Os cães que têm dermatite, por exemplo, precisam desse apoio. Beatriz explica que “os canis são lavados todo dia e não são todos que pegam sol, dependo do tempo. Isso vai fazer com que, às vezes, a umidade faça mal à pele deles”.  Por isso, é preciso um local onde eles fiquem e consigam melhorar de saúde.

Pedro Maia, professor de Educação Física de 31 anos, adotando Lili, que estava no lar temporário de Isabelle e Rodrigo / Foto: Sophia Cunha

Pedro Maia, professor de Educação Física de 31 anos, adotando Lili, que estava no lar temporário de Isabelle e Rodrigo / Foto: Sophia Cunha

Quando faltam doações e apoio do poder público, não é uma tarefa simples assegurar as cinco liberdades animais: nutrição, saúde, ambiente apropriado, ser livre para expressar o comportamento natural e livre do sofrimento. Porém, o esforço sempre é o maior possível. Luciana Ramos, tratadora do G.A.R.R.A há dez anos, solta todos os dias os cachorros no gramado. “A gente vive comprando ração, sachê, latinha. Deixa a vida deles mais feliz”, diz Simone, sempre preocupada com o bem-estar dos gatos. “O animal é um ser que sente dor, sente o abandono, sente tristeza e morre na falta de um tutor. As pessoas não se dão conta de que o animal é um ser igual a gente, só não fala.”

Adoção e características dos animais

Luciana Ramos com Chapolin, Piuí, Tifanny / Foto: Sophia Cunha

Luciana Ramos com Chapolin, Piuí, Tifanny / Foto: Sophia Cunha

O processo de adoção costuma ser rigoroso, com o intuito de conseguir proporcionar uma família ideal para cada bichinho. “A gente só doa se for para ser melhor do que a gente tem aqui”, explica Alexia. Novamente, a compreensão não é de todos: “Tanto que se você olhar lá nos nossos comentários (das redes sociais), vira e mexe têm uns xingamentos, porque as pessoas não entendem que elas não são adequadas”.

Sempre para um cachorro do Abrigo João Rosa ser liberado, é preciso o consentimento da maioria dos voluntários responsáveis pelas entrevistas. “A gente é muito acusado de ser muito burocrático na adoção”, expõe Beatriz. Até que o cachorro deixe eles, há um período de “pós-adoção”: uma espécie de “guarda compartilhada”, em que a futura família fica em contato com alguém da associação. Mesmo com todo esse processo de acompanhamento e de orientações sobre como cuidar dos animais, muitos cães são devolvidos. 

Quando um garrinho é adotado, o tutor tem até sete dias para a adaptação. Se a devolução ocorrer depois desse período, são cobrados dez sacos de 15 quilos de ração, no caso de cachorros, ou seis sacos de areia higiênica e a mesma quantidade de comida, se for um gato – tudo com marcas específicas. Mas se houver transferência sem aviso prévio para outra pessoa ou houver envolvimento de maus-tratos há uma penalidade financeira de três salários mínimos. “É para a pessoa ler o contrato e pensar duas vezes antes de adotar. Ter responsabilidade com a vida”, justifica Alexia. 

Em casos mais sérios, apesar de não terem multa, Beatriz diz que o abrigo tem uma advogada. O Gatil de Simone tem um contrato que “não tem valor jurídico, mas tem valor moral”. Na visão de Beatriz, se for para tirar o animal de um lugar em que ele recebe amor e doá-lo a uma casa que não é ideal, o melhor é deixar com eles: “Muitas das vezes, dependendo da situação, a nossa preocupação é que o cachorro volte logo”. 

Ainda segundo ela, “geralmente, o motivo (de devolução) nunca é compreensível o suficiente". Alguns cachorros têm dificuldades de se adaptar às famílias, “porque o canil é uma realidade deles”. Outras, simplesmente não respeitam a personalidade dos bichinhos adotados: “É raro, mas acontece com frequência de pessoas adotarem filhotes e esquecerem que, quando crescem, eles fazem bagunça”. Os tutores se responsabilizam pelo cão justamente na idade em que a probabilidade de adoção é maior e devolvem quando ele já está mais velho, tornando-se mais complicado para o abrigo achar um novo dono.

Rui já foi devolvido quatro vezes / Foto: Sophia Cunha

Rui já foi devolvido quatro vezes / Foto: Sophia Cunha

Os animais mais idosos sofrem maior dificuldade em conseguirem tutores definitivos. “A gente tem uma janela de interesse de adoção muito pequena. Até os quatro meses existem muitas pessoas interessadas, passou disso, eles já começam a perder consideravelmente as chances”, explica Beatriz. Simone ainda pontua: “Quando o gato começa a envelhecer, ninguém quer. Querem gatos filhotes”. Os castrados também costumam perder a oportunidade. No Abrigo João Rosa, antes de seis meses, a responsabilidade de esterilização é do adotante, mas, se eles ultrapassarem essa idade, passam pelo procedimento: “O ideal seria que todos já fossem castrados, mas eles perdem visibilidade”.

Os traumas acompanham a vida de alguns animais e isso faz com que nem todos sejam fáceis de lidar. Desde que chegam no AJR os cachorros são adestrados para “mostrar que está tudo bem” e para que convivam com a funcionária e com os prestadores de serviço. Assim como eles, os voluntários do G.A.R.R.A também fazem passeios de coleira, com o propósito dos cães se acostumarem com os futuros donos. “Alguns são muito tranquilos e entendem o processo. Mas a gente tem outros que são extremamente traumatizados”, expõe Beatriz.

Marina não gosta tanto de mimo. Já foi adotada e devolvida, pois ela não se dava bem com idosos e com crianças. Hoje, com as sessões de adestramento, consegue conviver bem com as pessoas, mas é uma adoção que requer um treinamento do tutor com o adestrador / Foto: Sophia Cunha

Marina não gosta tanto de mimo. Já foi adotada e devolvida, pois ela não se dava bem com idosos e com crianças. Hoje, com as sessões de adestramento, consegue conviver bem com as pessoas, mas é uma adoção que requer um treinamento do tutor com o adestrador / Foto: Sophia Cunha

Mesmo com todo o cuidado, não são todos os bichinhos que conseguem ser dóceis. Na situação dos cães da “Casa dos Horrores”, as famílias precisaram respeitar todo um processo, e os que permaneceram no abrigo até hoje são traumatizados com humanos que não fazem parte da rotina deles. “A gente entende que cada um tem seu temperamento”, expõe Alexia. Alguns não compreendem a especificidade de cada animal: “Nem todos vão gostar de mimo. Por não seguirem as regras e recomendações, os adotantes acabam culpando os cachorros”, diz Beatriz. Também por isso, segundo ela, muitos acabam voltando.

A depender da cor e do sexo, também há uma grande rejeição: “Cria-se um estereótipo de que o cachorro macho é mais agressivo e de que o macho e preto é mais ainda”. Bia complementa que, infelizmente, eles partem do princípio de que, se o cachorro tem idade avançada, é macho e preto, ele vai ficar no abrigo para sempre. Mas é claro que existem exceções.

Suvaco é uma adoção que quebra todos esses paradigmas. O cachorro recebeu um lar já velhinho, é preto, macho e não convive muito bem com cães do mesmo sexo. Hoje, um dos tutores, Rodrigo, se emociona só de pensar nele. “Ele é o cachorro mais carinhoso do mundo. A família se apaixonou por ele”, conta Isabelle. “O que eles proporcionam para a gente não tem preço.”

Isabelle Mendes e Rodrigo Mendes falam sobre a adoção de Suvaco

Isabelle Mendes e Rodrigo Mendes falam sobre a adoção de Suvaco

Leona / Foto: @gatilpegadasdeamor

Leona / Foto: @gatilpegadasdeamor

Jiló / Foto: @gatilpegadasdeamor

Jiló / Foto: @gatilpegadasdeamor

História do Gatil Pegadas de Amor

Na rua de Simone Rentroia, havia uma casa que atraía vários gatos. Sempre que podia, ela passava e deixava comida para eles. Inconformada com a quantidade de animais que todos os dias apareciam ali, inclusive alguns doentes, ela pediu insistentemente à dona que deixasse a outra protetora e ela entrarem no local. “Não tinha um lugar limpo. Tinha gato morto.” A situação era deplorável: “Eu falei: ‘Deus, por onde eu começo’” .

Logo ela começou a arrumar a casa e a projetar o espaço para que os gatos conseguissem viver lá. “Quando eu vi, comecei a castrar o primeiro gato”, diz Simone. Já vai fazer quatro anos que ela faz essa caridade, que ela não gosta de chamar de trabalho. “Isso aqui é o amor. O amor da minha vida.” Hoje, a casa continua sendo da senhora e ela afirma: "Daqui ninguém me tira”. Para a protetora, a maior recompensa é ver a vida de cada bichinho ser transformada por conta de um bom tratamento, como o deles: “Quando cada um ganha um lar, para a gente é uma felicidade”.

Instagram: @gatilpegadasdeamor

Simone Rentroia, fundadora do Gatil Pegadas de Amor, narra a história da casa e de amor pelos bichinhos

Simone Rentroia, fundadora do Gatil Pegadas de Amor, narra a história da casa e de amor pelos bichinhos

Renata Prieto, fundadora do G.A.R.R.A

Renata Prieto, fundadora do G.A.R.R.A

Alexia Knopf, diretora do G.A.R.R.A

Alexia Knopf, diretora do G.A.R.R.A

Foto de João Rosa

Foto de João Rosa

Beatriz Reis, voluntária do Abrigo João Rosa, e Erin / Foto: Sophia Cunha

Beatriz Reis, voluntária do Abrigo João Rosa, e Erin / Foto: Sophia Cunha

História do G.A.R.R.A

Um certo dia, Renata Prieto, que era guitarrista de uma banda chamada Golden Boys, recebeu um e-mail solicitando resgate de um Rottweiler que seria sacrificado em um CCZ (Centro de Controle de Zoonoses) de Niterói. Ela escreve em seu site que “os animais eram realmente invisíveis para a grande maioria da população, eles não tinham quem os protegesse e protetores de animais eram considerados loucos!” No mesmo ano, ela fundou com outras pessoas o SOS Vida Animal: “Fizemos muitas loucuras, salvamos muitas vidas e a cada dia que passava eu me afastava da minha realidade para mergulhar nesse novo mundo que era resgatar, reabilitar e encontrar novas famílias para animais”. 

Quando se mudou para Petrópolis, o G.A.R.R.A (Grupo De Ação, Resgate E Reabilitação Animal) surgiu. Ao retornar para o Rio de Janeiro, em 2018, o grupo se tornou uma ONG, quando Renata descobriu que estava com um câncer de mama. “Minha família, esposa e filha, sempre me apoiaram e sempre foram meu suporte em tudo, mas não era justo, se algo me acontecesse, deixar centenas de animais sob a responsabilidade delas sem sequer institucionalizar o nosso projeto”, comenta. Assim, desde o começo com o S.O.S Vida Animal, o santuário contabiliza mais de 20 anos cuidando das vítimas de maus-tratos e abandono. “Esse é o G.A.R.R.A. uma ONG que tem 99% de sua essência de coração, de amor e emoção... Assim temos sobrevivido, apenas por amor e com amor pelos animais.”

Instagram: @garranimal

História do Abrigo João Rosa

Tudo teve início quando João Rosa, o vigia de um estacionamento, passou a cuidar dos cachorros que lá ficavam. A cada dia o número de cães crescia mais, pois ele não conseguia recusar ajuda. O dono do local, insatisfeito com o ato dele, disse que ou ele se mantinha no emprego ou ficava com os bichinhos: “Ele pegou os cachorros e foi embora! Levou tudo para a casa dele”, relata Beatriz. 

Seu João começou a recrutar pessoas para ajudar, mas muitos animais ainda eram abandonados na casa dele. Os voluntários que surgiram nesse meio tempo se reuniram para conseguir o terreno atual. O abrigo não tinha a estrutura com canis, como tem hoje, era aberto, com todos os cachorros juntos. Isso trazia muitos problemas, como a fácil propagação de doenças e a disputa entre eles. “Às vezes, o cachorro chegava e apanhava. Muitos cães morriam com briga.” Apesar de ainda não ser o ideal, atualmente, o abrigo consegue dar, dentro do possível, maior qualidade de vida com adestradores, voluntários, veterinários e até mesmo promovendo sessões de acupuntura.

Instagram: @abrigojoaorosa

@lojinhaajr

Beatriz Reis conta a história de Abrigo João Rosa e o cuidado com os cães

Beatriz Reis conta a história de Abrigo João Rosa e o cuidado com os cães