Moradores sofrem com enchentes, enquanto investimentos não alcançam solução

Bairro de Jardim América é alvo de enchentes anuais e traz preocupação para a população que pede socorro às autoridades governamentais

A angústia

A noite chega. No bairro de Jardim América a previsão indica chuva no início da madrugada. Os moradores da região começam a ficar apreensivos. À medida que as horas passam, uma forte chuva começa a cair, fazendo com que a cidade entre em estágio de atenção. As águas começam a subir lentamente pelas ruas do bairro, gerando angústia na população. O Rio Acari continua a subir, e a correnteza bate intensamente contra as casas construídas nas margens.

No início deste ano, uma forte chuva no Rio de Janeiro provocou o desabamento de duas casas em Jardim América, Zona Norte, devido ao aumento do nível do Rio Acari. Este rio nasce na Serra de Gericinó, localizada no extremo oeste da cidade, e desemboca no Rio Meriti, no município de Duque de Caxias. Com uma extensão de 20 km, o rio delimita os bairros de Pavuna, Costa Barros, Coelho Neto, Parque Colúmbia, Irajá, Colégio, Jardim América e Barros Filho. Até o século XIX, a área do Rio Acari era rural e dedicada principalmente ao cultivo de cana-de-açúcar. Com a construção da Estrada de Ferro Rio D’Ouro em 1875, pequenos povoados começaram a se formar na região, seguidos posteriormente por alguns loteamentos.

Águas turbulentas

O bairro de Jardim América tem cerca de 25 mil habitantes, segundo dados de 2010 do Instituto Pereira Passos, da Prefeitura do Rio. A região é atingida pelas enchentes que ocorrem durante as chuvas que caem, principalmente, nos meses de janeiro e fevereiro há anos. Moradores relatam que o nível da água sobe a cada enchente, agravando os problemas na região. Essa situação deixa a população da região em alerta máximo. As residências, construídas irregularmente perto do rio, sofrem com esse problema todos os anos, o que aumenta o medo e a vulnerabilidade local diante das chuvas intensas.

Aquecimento global

Um estudo do Centro de Operações Rio (COR) identificou um aumento na ocorrência de chuvas consideradas muito fortes na cidade do Rio de Janeiro nos últimos 14 anos, com picos de precipitação cada vez mais intensos durante o verão. “O aquecimento global está dentro dessas mudanças climáticas. Podemos considerar como uma das causas desse fenômeno”, destacou a meteorologista Carolina Ferreira.

Segundo a Secretaria de Ordem Pública (SEOP), desde 2021, foram demolidas mais de três mil edificações sem autorização na cidade do RJ. Foto: Guito Moreto - O Globo

Segundo a Secretaria de Ordem Pública (SEOP), desde 2021, foram demolidas mais de três mil edificações sem autorização na cidade do RJ. Foto: Guito Moreto - O Globo

A Zona Oeste do Rio de Janeiro tem o maior número de construções e invasões irregulares, segundo levantamento do Disque Denúncia obtido pelo O DIA. Foto: Guito Moreto - O Globo

A Zona Oeste do Rio de Janeiro tem o maior número de construções e invasões irregulares, segundo levantamento do Disque Denúncia obtido pelo O DIA. Foto: Guito Moreto - O Globo

Jacarepaguá (9,4%), Campo Grande (9,02%) e Guaratiba (5,26%) têm as maiores incidências de construções irregulares. Foto: Guito Moreto - O Globo

Jacarepaguá (9,4%), Campo Grande (9,02%) e Guaratiba (5,26%) têm as maiores incidências de construções irregulares. Foto: Guito Moreto - O Globo

"Passamos por situações complicadas, por conta
dos riscos que tem, como de passar na água suja,
podendo pegar doenças sérias", diz Drielly

Jardim América: infraestrutura
precária e desastres naturais

A situação piora ainda mais com a falta de infraestrutura adequada. Em Jardim América, é possível ver diversas casas que foram construídas de forma irregular, em áreas de risco, tornando-se altamente vulneráveis a desastres naturais. "Eles [prefeitura] falam que vão vir dragar (limpar, drenar) o rio, mas nunca vêm”, revela Drielly Ramalho, de 20 anos, moradora da região. Além disso, essas inundações trazem sujeira, mau cheiro e até mesmo bichos como jacarés, baratas e ratos. "Passamos por situações complicadas, por conta dos riscos que tem, como de passar na água suja, podendo pegar doenças sérias", diz Drielly, que mora em uma rua localizada à beira do Rio Acari. Estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontam que a proliferação de pragas urbanas como ratos e baratas está diretamente relacionada ao acúmulo de lixo e entulho trazidos pelas enchentes, aumentando o risco de doenças como leptospirose e dengue.

A contaminação é muito comum em situações de enchentes e inundações, quando as pessoas permanecem em contato prolongado com água ou lama contaminadas pela urina de ratos, muito numerosos nos esgotos e bueiros das grandes cidades. “A população deve evitar entrar em contato com a água da enchente, permanecendo em local seco e seguro, e esperar a água baixar. Se não houver uma alternativa, o indicado é proteger a pele com galochas ou sacos plásticos”, orienta Ilana Teruszkin Balassiano, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).

Em 2019, uma pesquisa da Fundação João Pinheiro revelou que mais de 5,8 milhões de moradias no Brasil tinham problemas relacionados ao déficit habitacional. Foto: Reprodução/Internet

Em 2019, uma pesquisa da Fundação João Pinheiro revelou que mais de 5,8 milhões de moradias no Brasil tinham problemas relacionados ao déficit habitacional. Foto: Reprodução/Internet

Segundo dados da Prefeitura do Rio, desde 2021 foram investidos cerca de R$ 2,1 bilhões em ações preventivas, incluindo a contenção de encostas, programas de infraestrutura e aquisição de novas tecnologias para aprimorar a capacidade de resposta a eventos climáticos extremos. No entanto, alguns moradores afirmam que esses investimentos não se refletem em melhorias visíveis no Jardim América. "Não vemos esses R$ 2,1 bilhões aqui," diz Joice Equey, residente do bairro. "As ruas continuam alagando, e as condições das casas só pioram. Parece que esses recursos não chegam até nós." Esse sentimento de desamparo é compartilhado por outros residentes, que sentem que as ações anunciadas pelo poder público não têm sido eficazes na diminuição dos impactos das enchentes em suas vidas diárias.

"As ruas continuam alagando, e as condições das casas só pioram", diz Joice

E o saneamento?

Beatriz Martinez, de 26 anos, moradora de Jardim América, compartilha as dificuldades que enfrenta diariamente vivendo em uma área afetada por enchentes. "A falta de saneamento básico e o risco de deslizamento quando chove", relata. "É revoltante, porque a constituição prevê direitos básicos ao cidadão; porém, esses não se aplicam na prática. Enquanto isso, milhões são investidos em shows totalmente desnecessários", desabafa Beatriz, destacando a diferença entre os investimentos públicos e as necessidades reais da população. A saúde de sua família também sofre os impactos dessa precariedade. "Já tive H. pylori, que pode ter sido devido à qualidade da água, sem contar o impacto na saúde mental. A preocupação com o risco de desabamento gera estresse e traumas causados por presenciar o desabamento de outras casas próximas”, conta, evidenciando a profundidade do problema vivido pelos moradores.

Aproximadamente 49 milhões de brasileiros (24,3% da população) ainda não têm acesso a saneamento básico adequado, segundo o IBGE. Foto: Reprodução/Internet

Aproximadamente 49 milhões de brasileiros (24,3% da população) ainda não têm acesso a saneamento básico adequado, segundo o IBGE. Foto: Reprodução/Internet

Para Carlos Machado, pesquisador da Fiocruz, o processo de reparação dos danos pode, dependendo de sua condução, agravar ainda mais a situação. Ele menciona os exemplos da tragédia da Samarco e dos deslizamentos de terra que ocorreram em 2011 na região serrana do estado do Rio de Janeiro. Nesse último evento, milhares de pessoas ficaram desabrigadas em Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo e outros municípios. "O que nós aprendemos com o desastre da região serrana é que a reconstrução de moradias em conjuntos habitacionais foi feita de forma absolutamente desrespeitosa com as necessidades da população, trazendo outros problemas de saúde. O que nós aprendemos com o desastre da Samarco, em Mariana, é que, três anos depois, concretamente, as pessoas não tiveram suas casas e suas vidas reconstruídas e esses processos têm impacto sobre a saúde."

Moradora de Jardim América
relata desafios e falta de
segurança no bairro

Beliene Agostini, de 40 anos, moradora de Jardim América há três anos, também compartilha os desafios de viver no bairro e ainda menciona a falta de segurança. Além disso, ela fala sobre a sensação de presenciar essa situação durante os últimos anos: "Nos sentimos impotentes diante de tudo, porque a cada chuva que vem, não podemos fazer muito, só pedir a Deus para nos manter vivos e ajudar quem precisa". Ela também descreve o impacto das enchentes na saúde de sua família: "Quando tivemos a última enchente, eu tive crises de ansiedade fortes devido a tudo, passei mal. Minha tia, que teve sua casa afetada e perdeu tudo, teve problema com pressão alta e até hoje não conseguiu superar, vira e mexe ela tem crises."  Beliene disse não conhecer nenhum programa de habitação do governo que auxilie pessoas em áreas de risco e revela nunca ter sido atendida por nenhum. É importante ressaltar que existem, pelo menos, três programas do Governo Federal que são direcionados à habitação no Brasil. São eles: Programa Casa Verde e Amarela, que visa atender as necessidades habitacionais da população; O Pró-Moradia, que é um financiamento habitacional de estados, municípios e órgãos federais; e o Sistema Nacional de Interesse Social, que visa dar acesso à moradia digna para a população de baixa renda. A mensagem que Beliene gostaria de enviar às autoridades é clara: "Para eles [as autoridades] não aparecerem somente próximo às eleições, mas que ajudassem nosso bairro, que está nas mãos de bandidos e nos sentimos largados".

As habitações precárias representam cerca de 8% do número total de domicílios do país, segundo levantamento da Campanha Despesos Zero, entre 2020 e 2022. Foto: Reprodução/Internet

As habitações precárias representam cerca de 8% do número total de domicílios do país, segundo levantamento da Campanha Despesos Zero, entre 2020 e 2022. Foto: Reprodução/Internet

Segundo a Fundação João Pinheiro, a demanda atual por novas moradias ultrapassa 6,2 milhões, enquanto 26,5 milhões de domicílios precisam de reformas. Foto: Reprodução/Internet

Segundo a Fundação João Pinheiro, a demanda atual por novas moradias ultrapassa 6,2 milhões, enquanto 26,5 milhões de domicílios precisam de reformas. Foto: Reprodução/Internet

11,4 milhões de brasileiros vivem em áreas de risco, aponta IBGE

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 11,4 milhões de brasileiros vivem em áreas de risco, o que representa cerca de 6% da população total do país. Esse número é alarmante, especialmente considerando que as áreas de risco são mais suscetíveis a desastres naturais como enchentes e deslizamentos de terra. "Precisamos de um planejamento urbano eficaz que leve em consideração as condições geográficas e climáticas locais. A falta de investimentos em infraestrutura básica e a ocupação desordenada do solo urbano são fatores que agravam as consequências das enchentes. Sem uma abordagem integrada que envolva todas as esferas de governo e a participação da sociedade civil, continuaremos vendo tragédias como essas se repetirem ano após ano," conclui o urbanista Pedro Santos, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

"É revoltante, porque a constituição prevê
direitos básicos ao cidadão", diz Beatriz