Jane Austen, Machado de Assis e… sexo?
Elitização do conceito de literatura e hate massivo por livros comerciais desmotivam o hábito de leitura

"O que pode ser considerado literatura e como definir esse conceito complexo? Afinal, existe uma literatura melhor ou pior?"

(Foto: Reprodução)
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Extra! Extra! Uma mulher entediada com seu casamento, influenciada por livros de romance, decidiu trair seu marido e se aventurar em casos amorosos com diversos homens, mas se apaixonou por um deles e acabou arruinada. Emma Bovary é, sem dúvida, uma das personagens mais polêmicas da literatura clássica e sua história que envolve adultério, luxúria, poder e dinheiro poderia ter sido escrita nos dias de hoje. Com temas comuns aos de livros atuais, a recepção em suas respectivas épocas também é parecida. O livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert, foi muito criticado em seu lançamento e o autor acusado de imoralidade. Aclamado na atualidade, o livro de Flaubert não é diferente de diversas obras contemporâneas que são acusadas de obscenas e inescrupulosas. Mas se até a dita “alta literatura” já foi censurada, então o que pode ser considerado literatura e como definir esse conceito complexo? Afinal, existe uma literatura melhor ou pior?
"É uma fuga para outra realidade que me faz refletir e me deixa mais feliz”
Segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, literatura pode ser definida de duas maneiras: como uma forma de expressão escrita que se considera ter mérito estético ou estilístico e como um conjunto das obras literárias de um país, de uma região ou de determinada época. Apesar de corretas, essas definições não abarcam toda a extensão do termo que envolve diversos gêneros e funções. Além disso, as obras literárias têm diferenças fundamentais para outros gêneros da língua portuguesa, como os textos jornalísticos. Enquanto a literatura se utiliza de um caráter mais subjetivo e conotativo, os textos jornalísticos têm uma perspectiva mais utilitária e imparcial. Para muitos, a literatura tem então um valor fundamental na manutenção da cultura e pode ser usada como forma de escape. A vestibulanda e leitora ávida Sabrina Pereira, de 19 anos, descreve sua relação com o tema: “A importância da literatura para mim é conseguir sair da minha vida em momentos de estresse e viver junto com a protagonista dos livros, é uma fuga para outra realidade que me faz refletir e me deixa mais feliz”.

Com a pandemia da Covid-19, outros jovens como Sabrina se voltaram para a literatura de modo que fosse utilizada para entretenimento e fuga da realidade. A manifestação artística passou, então, a ganhar outros espaços de divulgação e se tornou popular nas mídias digitais. Os nichos de livros nas redes sociais viralizaram durante o período de confinamento e os chamados booktokers - influenciadores que criam conteúdo no TikTok indicando livros - conquistaram espaço e voz na internet. Conforme informações do 6º Painel de Varejo do livro, realizado pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros, em 2021, foram vendidos mais de 5 milhões de livros infantojuvenis apenas no 1°semestre. O aumento das vendas em comparação ao ano anterior foi, em maioria, devido à popularização desse nicho, mas com a crescente notoriedade surgiram também os críticos da prática. Em locais como o antigo twitter, muitos internautas criticaram os livros que estavam sendo indicados, principalmente, os para jovens adultos. Os livros hot ou romance eróticos foram rechaçados por um público mais conservador e acusados de falsa literatura.
"Existem professores que vão falar que os romances soft porn não são literatura, mas é o que mais vende na Amazon. Não dá para dizer que não é literatura, mas vão ter os livros bons e os ruins dentro de cada gênero”
Se Jane Austen, escritora inglesa do século XIX, marcou a literatura com seus romances repletos de amor e paixão, e Machado de Assis revolucionou ao criar um dos maiores enigmas do realismo no Brasil - Capitu traiu ou não Bentinho? - por que escritoras de romances eróticos não poderiam deixar sua marca na literatura? Afinal, livros clássicos e autores imortalizados na história também falam sobre erotismo, mas o julgamento sobre essas obras é inexistente. Para o especialista em autopublicação no Brasil e doutorando em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Leandro Müller, a discussão é um pouco mais profunda: “A literatura contemporânea é mais difícil porque ela ainda não é unânime, então ela agrada algumas pessoas e outras não. Por exemplo, existem professores que vão falar que os romances soft porn não são literatura, mas é o que mais vende na Amazon. Não dá para dizer que não é literatura, mas vão ter os livros bons e os ruins dentro de cada gênero”. Ainda segundo o doutorando, negar esses subgêneros não é a solução, mas entender que dentro deles há diferenças de qualidade e que mesmo os livros ruins fazem parte da literatura.

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As redes sociais potencializaram as discussões sobre o que pode ou não ser considerado literatura, mas esse não é um debate exclusivo da era digital. O termo “alta literatura” é utilizado há décadas e tem como objetivo separar livros considerados excelentes daqueles que são vistos como puramente comerciais. Shakespeare, Miguel de Cervantes, Mary Shelley, Victor Hugo e tantos outros são autores consagrados, e fazem parte do seleto grupo da “alta literatura". Os livros desses escritores podem ser considerados parte da denominada “cultura erudita” onde produções artísticas elaboradas são de consumo quase que exclusivo da elite. A linguagem utilizada nos livros pertencentes à “alta literatura” é normalmente arcaica e de difícil compreensão, dificultando o acesso das grandes massas a eles. Em contrapartida, obras contemporâneas têm uma linguagem mais acessível e permitem que grandes públicos tenham maior facilidade de compreensão. Müller comenta sobre essa separação entre cultura erudita e popular na literatura: “O clássico tem uma facilidade que é a seguinte, ele já está legitimado pelas instâncias de poder intelectuais, ele já sobreviveu ao tempo, mas se você pegar o Shakespeare, por exemplo, é literatura popular. São coisas populares que a elite vai trazendo para ela e incorporando”.

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A definição de literatura é, a partir dessas nuances, complexa. Para alguns apenas os livros clássicos podem ser considerados válidos, para outros toda ficção produzida pela palavra escrita é uma literatura válida. O significado do termo passa a ser relativizado e aberto a interpretações. A Bienal do Livro 2023, realizada no Rio de Janeiro, foi responsável por uma nova onda de debates sobre o tema nas redes sociais. Estandes com quadrinhos, mangás, fantasias e romances eróticos se espalharam e a diversidade de estilos e gêneros marcou a quadragésima edição do evento. Entre os diversos participantes estava o quadrinista Maurício de Sousa, responsável pela criação da Turma da Mônica, que concorreu recentemente a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Apesar de não ter conquistado a vaga, o concorrente a 8.° cadeira da instituição foi apoiado, nas redes sociais, por leitores que desenvolveram gosto pela leitura devido a Turma da Mônica. O enquadramento de HQs como literatura também é uma questão entre os estudiosos do tema. Os favoráveis à inserção do gênero como literatura defendem o valor ficcional e cultural das novelas gráficas, já os contrários a essa consideração afirmam que as HQs têm linguagem e recursos estilísticos próprios diferentes dos propostos pela literatura.

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Independente das opiniões sobre o conceito, há uma crescente elitização em torno dele, colocando-o em um patamar acima e desvalorizando outros nichos da literatura que não são considerados clássicos. Os livros dessa classe são uma parte importante para construção cultural de um povo e da humanidade, afinal assim como Müller aponta em sua fala sobre literatura, eles sobreviveram ao teste de resistência do tempo e espaço. A leitura das obras consideradas clássicas é necessária para uma compreensão maior dos movimentos e produções culturais ao longo da história. Porém, com os nichos literários nas redes sociais fazendo sucesso com indicações contemporâneas, a validação de leitura também passou a ser uma realidade. Em redes sociais como o antigo twitter, esse discurso se perpetua e desmotiva jovens leitores a continuar a prática. É importante lembrar que ao aprender a ler começa–se com livros mais fáceis até conseguir compreender os mais complexos, assim também é o hábito de leitura. Mas se a leitura só é válida se o que está sendo lido é um clássico e ler outros livros te torna inferior intelectualmente, então por que se esforçar para ler obras incompreensíveis?
"Acredito que a própria definição de literatura é conseguir ser várias coisas ao mesmo tempo, é todo uso da linguagem que questiona a própria linguagem, o mundo e a realidade”
Para Luís Felipe Abreu, doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, falar sobre literatura e a questão da validade literária é importante e necessário: “Se é algo que usa a linguagem, se usa a imaginação e está tentando provocar o pensamento através do uso da linguagem, então isso é válido e é literatura”. A opinião de Abreu é a mesma de internautas contrários ao movimento de elitização literária que ocorre nas redes sociais. “Pessoalmente, eu tenho uma visão que eu não acho que a gente possa dizer que é literatura algo que é melhor esteticamente e que não é literatura algo que é pior esteticamente ou mais comercial”, reflete o especialista, que também é professor da UFRJ. Apesar de ter uma definição clara no dicionário, as discussões acerca do termo são vastas e a pergunta do que é literatura se mistura com a amplitude do conceito. Questionado sobre qual a definição de literatura, Abreu responde: “essa é a pergunta de um milhão de reais, é uma pergunta que não tem uma resposta definida ou uma resposta só. Acredito que a própria definição de literatura é conseguir ser várias coisas ao mesmo tempo, é todo uso da linguagem que questiona a própria linguagem, o mundo e a realidade”.
