Inclusão além da matrícula
Estudantes neurodivergentes lutam para permanecer no Ensino Superior

Acordar. Check. Ir ao banheiro. Check. Comer. Check. Tomar banho. Check. Pegar o ônibus. Check. Cumprimentar as pessoas nos corredores. Check. Entrar na sala de aula. Check. Sentar na cadeira… espera, essa cadeira não. Onde está? Sentar na cadeira de madeira. Check. Parece cansativo ter que pensar em tudo isso todas as manhãs. Mas os dias são assim para Isabella Vidal, de 22 anos. “Seja no relacionamento, na faculdade ou no trabalho, eu tenho que criar meus mecanismos para poder viver no sistema das pessoas neurotípicas (ver glossário no final da reportagem)”, revela. Estudante de Letras na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), ela avalia sua trajetória acadêmica assim: o dobro do esforço e nenhum apoio da instituição.
Imagem de Pexels
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Há três anos, ela foi diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Mesmo depois de informados sobre esse laudo, muitos professores negaram o pedido da aluna de adaptar as provas. O preconceito dos estudantes e o desamparo do núcleo de inclusão do campus também tornam a experiência de Isabella mais difícil. “Inclusão não é só colocar para dentro de uma instituição. Inclusão é garantir que o aluno consiga ter uma educação com mínimo de barreira”, protesta Elda Firmo. No ano passado, a professora de Literaturas e Culturas Hispânicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) participou da Comissão Institucional de Acessibilidade para Pessoas com Deficiência.
O comitê foi formado por 50 profissionais da Uerj para levantar dados sobre as necessidades de acessibilidade nos campi. A intenção dessa coleta de informações era alinhar as condições da universidade à legislação que garante o bem-estar e a educação de pessoas com deficiências ou nerodivergências. A Lei n° 14.254, de 2021, por exemplo, assegura que estudantes do ensino básico com dislexia, TDAH ou qualquer outro transtorno que interfira no aprendizado tenham as demandas específicas atendidas por profissionais da área educacional e da saúde. Segundo a pedagoga e neuropsicóloga Jane Andréa Santos, esse tipo de assistência é igualmente necessária no ensino superior: “Ao receber esses alunos atípicos, a própria faculdade tem que criar um núcleo de apoio, com uma equipe multidisciplinar”.
Como resultado da pesquisa, a Comissão Institucional de Acessibilidade para Pessoas com Deficiência identificou carências como tempo adicional para fazer provas, adaptação das avaliações e variação das maneiras de apresentar os conteúdos. Apesar de ter identificado fatores importantes para o acolhimento dos alunos, Elda conta que a comissão se dispersou logo após a publicação de um relatório sobre o trabalho. Hoje, ela e outros funcionários restantes se mobilizam como um coletivo, lutando para serem reconhecidos institucionalmente mais uma vez.
Imagem de Pexels
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A professora também vive com o Transtorno do Espectro Autista e acredita na importância da reunião e do protagonismo. Ela cita a frase de origem latina “Nihil de nobis, sine nobis” (“Nada sobre nós sem nós”), que na década de 1990 foi adotada por pessoas com deficiência que lutavam pelos seus direitos. No ponto de vista de Elda, colocar isso em prática não significa invalidar estudiosos do tema e valorizar apenas quem tem experiência própria, mas propor um diálogo entre as duas perspectivas. “Se vamos fazer uma mesa sobre autismo, por que não chamar uma pessoa que está há 20 anos trabalhando com isso e chamar um autista também?”, exemplifica.
Em um curso sobre Educação Especial, Isabella se viu em um ambiente onde falavam sobre pessoas neurodivergentes como se fossem de uma realidade muito distante, desconsiderando a presença dela. No decorrer de uma das aulas, foi proposto que os estudantes falassem de preconceitos que já ouviram sobre pessoas com deficiência. Quando chegou sua vez de falar, Isabella foi assertiva: “Todos esses que vocês falaram, já ouvi. Já ouvi para mim, não para os outros, para mim mesmo”. Ela acabou abandonando o curso por achar que não acrescentava nada em sua formação. “Parecia um grupo de apoio para neurotípicos sobre neurodivergentes”, critica.
Enquanto futura professora, ela considera esse tipo de exercício ultrapassado e desrespeitoso. Elda acredita que, na Uerj, já existem meios para os profissionais seguirem algumas das propostas sugeridas pela comissão de acessibilidade, tornando as disciplinas mais inclusivas. “O maior desafio é a gente mudar a mentalidade dos professores, conscientizar de que é possível fazer [essas transformações]”, afirma.
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A resistência de parte dos docentes é uma realidade. Isabella revelou ter recebido vários nãos de seus professores quando pedia mais tempo para terminar uma prova. Para organizar seus pensamentos, ela precisa fazer várias anotações a lápis antes de definir a forma final de uma questão a caneta. Por causa disso, frequentemente entregava as avaliações com respostas incompletas ou incompreensíveis para os demais. Isso acabou prejudicando as notas da aluna em algumas disciplinas. Mas esse era um problema para o qual ela mesma apresentava a solução: “Era só mais uma hora ali para fazer”, lamenta.
Elda entende que a relação direta entre professor e aluno pode ser complexa quando é preciso tratar de um tópico delicado como transtornos psicológicos. Muitos estudantes têm receio de falar sobre isso abertamente. “Quem quer sofrer discriminação?”, provoca. De acordo com Jane Andréa, há um estigma social enraizado na nossa cultura em relação às pessoas neuroatípicas. A neuropsicóloga explica que a sociedade impõe certos padrões de comportamento, nos quais todos os indivíduos devem se encaixar. “Se você não couber dentro dessa embalagem, não vai funcionar dentro da engrenagem em que ela [a sociedade] te põe e ela não vai saber lidar com você”, ilustra. “Então, ela vai excluir.”
Imagem de Dall-E
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Houve momentos ao longo da graduação em que Isabella sofreu preconceito por ter Transtorno do Espectro Autista. Uma situação marcante para ela foi quando participou do processo seletivo para um projeto de extensão. Antes de entrevistar os candidatos, os organizadores propuseram uma dinâmica para conhecê-los melhor. Cada um deles deveria falar um pouco sobre si. Durante sua apresentação, Isabella se sentiu desconfortável com a reação de alguns alunos. “Teve um pessoal que ficou me olhando e achando engraçado como eu estava falando, achando engraçado o fato de eu ser autista”, relata. “Eu esqueço muito rápido das coisas, mas eu lembro até hoje, porque isso me incomodou.”
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Tendo conhecimento dessa problemática, Elda tenta tornar a vivência de estudantes neurodivergentes mais digna com os recursos ao seu alcance. No dia a dia, ela explora meios diferentes para expor os assuntos da disciplina. Procura, por exemplo, lecionar um conteúdo tradicionalmente trabalhado por meio de leitura a partir de músicas ou produções audiovisuais. A estrutura da universidade não facilita esse tipo de atividade: nem todas as salas do departamento em que Elda trabalha têm projetor. Ainda assim, a professora avalia que o esforço compensa. Os benefícios vão para a turma inteira, já que todos os alunos têm acesso a uma educação diversificada. “Dá um pouquinho mais de trabalho, mas é prazeroso. Você vê que o engajamento da turma acaba sendo diferente”, conta, orgulhosa.
Além da adaptação dos materiais, Elda também tem flexibilizado as avaliações. Recentemente, aumentou prazos para entrega quando necessário. Por conta da demanda de uma aluna que se queixou de não conseguir escrever sob a pressão da prova, ela aplicou o mesmo exame de forma oral. A partir daquele momento, ela decidiu adicionar a apresentação de seminários como meio de avaliação, para ser mais justa com as diferentes habilidades dos estudantes. Na UFRRJ, Isabella faz parte do grupo de pessoas que prefere as exposições faladas e coletivas.
Ela se destacava nos trabalhos que permitiam maior liberdade criativa. Gostava de poder explicar da sua maneira. A estudante recebia muitos elogios por isso, mas não podia deixar de reparar nas risadas dos professores. “Meu jeito de falar sério é engraçado para eles”, observa. Ela acrescenta que esse tipo de atividade não era instituída com o objetivo de ajudá-la. “Ninguém nunca tentou mudar alguma coisa por minha causa”, esclarece. A universidade que ela frequenta tem um núcleo de inclusão que disponibiliza, entre outros artifícios, monitoria para alunos com deficiência. No entanto, quando ela tentou contatar o órgão para solicitar essa assistência, não teve retorno.
Imagem de DALL-E
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Isabella confessou ter a impressão de que o núcleo em questão se preocupa mais com estudantes com deficiências visíveis. É por esse motivo que Jane defende que o sistema educacional precisa de mudanças que ocorram de “dentro para fora”. Na opinião da pedagoga e neuropsicóloga, a instituição de políticas de amparo aos alunos tem pouco efeito quando o preconceito persiste. Apesar de não ter recebido suporte dos profissionais da universidade, Isabella pôde contar com a ajuda de alguns colegas. Eles faziam coisas simples, como ceder a cadeira em que ela se sentia mais confortável e deixar para ela os temas que ela mais se interessava nos trabalhos em grupo.“Eles se adaptavam a mim e eu me adaptava a eles”, recorda. Essa troca foi necessária porque, no decorrer do curso, Isabella não conheceu muitas pessoas com neurodivergências.
Isso é possivelmente um reflexo das dificuldades que os neuroatípicos enfrentam para conseguir ingressar em uma faculdade. Essa é uma realidade atestada no caso das pessoas com deficiência. Segundo a Pesquisa Nacional de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), em 2022, por volta de 14% dos jovens com deficiência de 18 a 24 anos estavam no Ensino Superior. Já entre os jovens sem deficiência, 25% estavam matriculados em institutos de educação superior. Mesmo que até o momento não existam dados sobre a presença de estudantes com neurodivergência nas universidades, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) reconhece que esses candidatos podem precisar de adaptações para concorrerem às vagas de forma justa.
Desde 2019, participantes com autismo, déficit de atenção ou dislexia têm direito a tempo adicional, assistência para leitura e ajuda para transcrição durante o Enem. Quando fez a prova, Isabella ainda não havia sido diagnosticada com TEA e TDAH. Portanto, ela teve que encontrar seus próprios métodos para lidar melhor com o exame. Comia uma quantidade exagerada de doces durante a prova para não prestar atenção nos sons que as pessoas faziam ao seu redor. Antes de entrar na sala, ela já sabia aonde iria se sentar. Tinha pesquisado sobre tudo que era possível: a disposição das salas e das carteiras no local de prova, a estrutura do exame, os critérios de avaliação, o processo de correção, o funcionamento da teoria de resposta ao item, entre outros aspectos. “Eu precisava entender como é que funcionava o Enem para eu poder me adequar ao sistema”, lembra.
Imagem de Freepik
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Para Jane, o sistema educacional deveria se adaptar aos alunos, não o contrário. No ensino básico, as redes municipais têm implementado o cargo de mediador. A pedagoga se questiona sobre como esses profissionais estão sendo formados. “As escolas acolhem, mas a nível de socialização”, observa. “Não tem uma metodologia diferenciada”, conclui Jane. Essa é a mesma circunstância que Isabella vê na escola onde estagiou. As escolas públicas no ensino fundamental I priorizam o desenvolvimento das habilidades sociais das crianças atípicas, negligenciando a alfabetização. Ao chegarem no ensino fundamental II, esses estudantes estarão em defasagem em comparação com os demais.
A preocupação de Jane Andréa é que essa desproporção se perpetue até o ensino médio e afete as chances de neuroatípicos ingressarem no Ensino Superior. Ela reconhece que, para mudar a estrutura de funcionamento das escolas públicas, vai ser necessário muito trabalho. A capacitação dos mediadores e professores e a atuação de psicopedagogos são medidas essenciais. Jane ressalta também que as desigualdades sociais existentes entre as pessoas com neurodivergências geram oportunidades diferentes. Enquanto algumas famílias têm poder econômico suficiente para matricular os filhos nas escolas mais especializadas, outras não têm nem o dinheiro da passagem para fazer atendimento psicológico em outra cidade.
Imagem de Pexels
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Essa disparidade também compromete um fator primordial: o diagnóstico. Os testes neuropsicológicos podem custar de 2 mil a 4 mil reais. Elda trabalha com descolonização e despatriarcalização. Usando o Transtorno do Espectro Autista como exemplo, ela critica: “Por que o autismo é branco? Porque as camadas mais pobres não vão fazer o exame”. Refletindo sobre isso, ela se aflige ao tentar estimar a quantidade de alunos negros que podem ter transtornos neuropsicológicos mas nunca foram diagnosticados. Ainda, a professora ressalta que muitas mulheres recebem diagnóstico tardio. Ela explica que as particularidades comportamentais de pessoas no espectro autista podem variar de acordo com o gênero. “Quando aparece uma mulher autista com características do autismo feminino, as pessoas invalidam, porque na cabeça delas, o autismo é masculino”, assinala.
GLOSSÁRIO

Fonte: Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Genial Care, IBGE, Portal do Governo Federal, Portal do Ministério da Educação, Relatório Consolidado dos Registros Fundamentados da Comissão Institucional de Acessibilidade para Pessoas com Deficiência da UERJ e Stimpunks Foundation.