Histórias de UTI Neonatal: o desafio de pais e filhos que lutam pela vida
Na Unidade de Terapia Intensiva, expectativas, sonhos e medos se cruzam e marcam a vida dos pequenos pacientes, seus familiares e profissionais
de saúde em atuação
By Tays Paulino

A correria para salvar a vida de um bebê. O som dos monitores cardíacos, a todo momento, ecoando no ambiente. Os inúmeros procedimentos realizados em crianças que, de tão pequenas e frágeis, podem caber na palma da mão. As dores desses pequenos. O choro de sofrimento. O medo da mudança do quadro clínico no dia seguinte. Nada disso condiz com o sentimento de alegria que o nascimento de um bebê deveria trazer, mas faz parte da realidade das unidades de terapia intensiva neonatais. Dentro delas, famílias e profissionais de saúde experienciam um turbilhão de emoções.
“Ser mãe de UTI não é nada fácil; é comemorar cada grama que seu bebê ganha, lutar e viver um dia de cada vez.” Assim, Nathalia Vieira, de 27 anos, define sua jornada de 66 dias na Unidade de Terapia Intensiva com as filhas gêmeas Isadora e Rayssa. As meninas nasceram prematuras, com apenas 30 semanas, no final de 2019, e enfrentaram muitos desafios para sobreviver: baixo peso, insuficiência respiratória, infecções, além de outras condições comuns à prematuridade.

Nathalia com Isadora (à direita) e Rayssa no colopela primeira vez, ainda na UTI (Reprodução/Arquivo Pessoal)
Nathalia com Isadora (à direita) e Rayssa no colopela primeira vez, ainda na UTI (Reprodução/Arquivo Pessoal)
A história de Nathalia e sua família com a rotina hospitalar começou bem antes do nascimento das gêmeas. Desde a descoberta da gravidez, a jovem precisou lidar com hospitais. A gestação, inesperada, foi descoberta já com 11 semanas, por conta de um aumento brusco de pressão. Com 20 semanas, Nathalia teve um sangramento nos lábios, que denunciava haver algo errado, e correu para o hospital. Oito semanas depois, teve que ser internada, devido à pré-eclâmpsia. E as meninas precisaram nascer após duas semanas de internação, porque uma delas, Rayssa, não estava nada bem. “Eu nem pude ver minhas filhas logo que elas nasceram, porque a equipe precisou fazer os procedimentos (comuns em partos prematuros) e levá-las para a UTI. Ali começou a minha jornada”, conta Nathalia.
No dia seguinte ao parto, a jovem foi visitar as filhas e entendeu, de fato, o que era uma Unidade de Terapia Intensiva. Nathalia se deparou com muitas “mães de UTI” e participou de momentos de dores e alegrias com elas. Também viu várias crianças, ainda muito pequenas, lutando pela vida, e mergulhou em uma realidade dura de se encarar: “Vi crianças lá que estavam mil vezes melhores que as meninas (Isadora e Rayssa) e morreram; e todos os dias meu coração ia com uma expectativa; às vezes boa, às vezes triste”.
A prematuridade como principal porta de entrada na UTI

O caso das filhas de Nathalia se assemelha ao de muitos bebês internados na Unidade de Terapia Intensiva, pelo que o originou: a prematuridade. Um artigo publicado na revista científica Brazilian Journal of Health Review mostra o nascimento prematuro como a causa de 48% das internações em UTI’s neonatais. A segunda principal causa é a disfunção respiratória, com 18,9% dos diagnósticos de internações.
É considerado prematuro todo bebê que nasce antes das 37 semanas de gestação, sendo classificado como: prematuro moderado ou tardio, aquele que nasce entre 32 a 37 semanas de gestação; muito prematuro, entre 28 a 32 semanas; e extremamente prematuro, até 28 semanas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O Brasil está entre os 10 países do mundo com mais nascimentos prematuros. São cerca de 302 mil nascimentos de bebês com menos de 37 semanas, independente do peso, de acordo com o Ministério da Saúde. Só em 2023, até o mês de junho, foram registrados 124.793 partos prematuros no Brasil, segundo o Painel de Monitoramento de Nascidos Vivos, do Portal DATASUS. E as causas para números tão alarmantes são multifatoriais.
Além da pré-eclâmpsia, há outros fatores de risco associados à prematuridade como a eclâmpsia, a gestação gemelar de forma natural - caso de Nathalia - a falta de cuidado no pré-natal, tabagismo, diabetes, doença renal, entre outras situações. Para servir de alerta e estimular a prevenção, foi criado o novembro roxo, campanha que marca o dia mundial da prematuridade, celebrado em 17 de novembro. A iniciativa é chancelada pelo Ministério da Saúde e divulgada em espaços como hospitais e faculdades.
O olhar de quem cuida na UTI Neonatal

Lidar com as vitórias e perdas também faz parte do dia a dia dos profissionais de saúde da Unidade de Terapia Intensiva. Andressa Melo, de 28 anos, é fisioterapeuta e trabalha em UTIs neonatais desde que se formou. A jovem vê a atuação nesta área com algo que requer muita responsabilidade: “Cuidamos do maior tesouro que uma família pode ter e que, em nenhum momento da vida, cogitou que poderia sair do hospital sem seu bebê no colo”.

Andressa uniformizada para um plantão (Reprodução: arquivo pessoal)
Andressa uniformizada para um plantão (Reprodução: arquivo pessoal)
Em meio à rotina na UTI, que define como complicada, Andressa acredita que uma das maiores dificuldades é a morte de bebês. “Como profissionais, muitas vezes acabamos não conseguindo vivenciar direito aquela perda, pois precisamos olhar para muitos outros esperando por nós", afirma a profissional de saúde. "Apesar de não conseguirmos mudar o destino daquela criança (que morre), temos muitas outras esperando por nós para tentar transformar o destino delas”, diz a fisioterapeuta.
Em seus cinco anos de profissão, a jovem destaca seu maior desafio, até o momento: uma criança que nasceu como uma alteração cardíaca grave e tinha indicação para transplante de órgão com poucos dias de vida. Andressa conta detalhes da história: “A gente sabia que era muito difícil, pela idade dele; e esse bebê ficou um tempo internado com a gente, com altos e baixos, depois foi transferido e, algum tempo depois, conseguiu o transplante". Essa experiência se soma a outras vividas por ela. “A gente vive em um misto de emoções todos os dias; de choro, alegria”, resume Andressa.
A saúde mental das famílias

A montanha-russa de sentimentos vivida pelos que cuidam, como Andressa, pouco se difere da situação daqueles que querem cuidar, como Nathalia e sua família. Apesar de ter precisado passar alguns momentos sozinha, a mãe de primeira viagem contou com o apoio do marido, Renan, e de toda a família. “Nunca imaginei passar por isso em minha vida”, reflete Nathalia.
E todos sofreram juntos. Nem sua mãe, Zeza, nem seu marido conseguiram assistir ao parto, dada a situação delicada das crianças. Além disso, em 2019, havia ainda uma crise na saúde municipal da cidade do Rio de Janeiro. As Organizações Sociais (OSs), responsáveis pela gestão de diversos hospitais e clínicas públicas, não estavam repassando os pagamentos aos funcionários, o que gerou um estado de calamidade nas unidades de saúde, principalmente na área da limpeza.
Nathalia conta que era sua família quem ajudava a manter o ambiente em que estava limpo, enquanto esteve internada e acompanhando as filhas na maternidade - o nome do local não será revelado para preservar a entrevistada. Porém, nem tudo estava ao alcance da família. A mãe das gêmeas precisou conviver com a precariedade de materiais hospitalares e muita sujeira, o que acredita ter contribuído para algumas complicações, tanto em seu quadro de saúde, quanto no das filhas.
Somado a isso, a rotina da UTI era desgastante. A jovem, que só conseguiu pegar uma das filhas, Rayssa, um mês depois de seu nascimento, por conta da gravidade do caso da menina, lembra com emoção dos momentos difíceis: “Eu não tive resguardo; ia para o hospital cheia de pontos, mas nem conseguia sentir dor porque a minha maior dor era o medo de perder minhas filhas”. Ela ainda relembra sua primeira celebração com as gêmeas. “Passei o Natal no hospital; fui a única mãe ali e não consegui participar da ceia com minha família, que preparou tudo com tanto carinho, mas minhas filhas não estavam lá", explica Nathalia. "Naquela noite, fui muito acolhida pelas enfermeiras, que me deixaram participar da ceia delas e tive uma surpresa, pois foi a primeira vez que pude pegar minhas filhas no colo”, conta a jovem.

Isadora e Rayssa pouco tempo após saírem da UTI Neonatal (Reprodução: arquivo pessoal)
Isadora e Rayssa pouco tempo após saírem da UTI Neonatal (Reprodução: arquivo pessoal)
Para a fisioterapeuta Andressa Melo, o acolhimento e apoio às famílias é essencial: “Para estar na UTI é preciso ter perseverança e empatia; é pisar ali sempre pensando em fazer o melhor para aquela família, não só para aquele bebê”. “O acolhimento à família faz toda a diferença em um momento como esse”, completa a profissional de saúde.
O olhar para o futuro

Passados quatro anos do nascimento de Isadora e Rayssa, o cenário é outro, repleto de alegria. As meninas, que nasceram no dia 22 de novembro de 2019 e saíram do hospital em 28 de janeiro 2020, precisaram fazer poucos acompanhamentos após a alta e não têm nenhuma sequela.
Saudáveis e muito falantes, as gêmeas são o xodó da família e representam para a mãe uma vitória. “Graças a Deus as meninas estão bem e não houve nenhum problema. Andaram no tempo certo, se desenvolveram bem, não precisaram de fisioterapia e têm muita saúde”, reflete. A mãe se emociona: “Eu fico muito feliz de ver minhas filhas assim e lembro de tudo que a gente passou; e de uma médica que, antes do parto, disse que era para eu escolher uma delas, porque possivelmente uma não iria sobreviver e eu ficaria com a outra de qualquer forma". "Queria dizer para essa médica que estamos bem", finaliza.
Um olhar para o passado

Quem conta essa história tem, literalmente, experiência no assunto. Eu, a futura jornalista que assina esta matéria, nasci aos seis meses de gestação, entre 24 e 28 semanas - não tenho o número com exatidão - em razão da pré-eclâmpsia de minha mãe. Fiquei internada por três meses na UTI Neonatal do antigo Hospital da CSN, hoje Hospital Santa Cecília, em Volta Redonda, cidade do sul fluminense do Rio de Janeiro, e recebi alta faltando dois dias para o Natal de 1995.

Eu, Tays Paulino, recém nascida, na UTI Neonatal (Reprodução: arquivo pessoal)
Eu, Tays Paulino, recém nascida, na UTI Neonatal (Reprodução: arquivo pessoal)
Meus pais, Rosane (in memorian) e Washington, lutaram bravamente e enfrentaram muitos dos desafios descritos acima, considerando a realidade deles e as tecnologias de meados dos anos 90. Tiveram medo, desespero, esperança, fé e amor, e, com o apoio de familiares e amigos, assim como o trabalho de uma equipe hospitalar incansável, enfrentaram a batalha, me dando a força que precisava.
Superei muitas dificuldades: três paradas cardíacas, dilatação no cérebro, baixo peso, formação de partes do corpo pós-nascimento e diagnósticos ora de não sobrevivência, ora de uma vida repleta de limitações. Hoje, aos 28 anos, não carrego nenhuma sequela desse passado, mas sim um agradecimento sem tamanho por vencer a luta pela vida.
Por isso, esta reportagem é um olhar para o passado, uma homenagem cheia de gratidão aos meus pais e a todos que torceram por mim, além de um convite a acreditar que os finais felizes e os milagres podem, sim, acontecer.