O termo “glasschild”, ou “criança de vidro”, surgiu na internet como uma forma de se referir aos irmãos de pessoas com deficiências. Sua origem é um mistério, mas a popularização foi feita por Alicia Maples através do Ted Talks. Em sua palestra, ela explica o significado da expressão: “Nós somos chamados de crianças de vidro porque nossos pais estão tão imersos nas necessidades de nossos irmãos e irmãs que, quando eles olham para nós, ele vêm através de nós. Como se fossemos feitos de vidro.

Em 2023, a #glasschild voltou a ficar em alta através de uma trend no TikTok em que pessoas que cresceram como crianças de vidro contavam suas experiências. Desta vez, o termo foi adotado também pelos irmãos de pessoas com doenças crônicas ou dependência química. Mesmo sendo casos diferentes, todos esses irmãos se identificavam com fatores em comum. “Crianças de vidro assumem as responsabilidades de um cuidador e somos naturalmente condicionados a não ter nenhum problema. Nós devemos ser perfeitos”, comentou Alicia no Ted Talks.

Nas telas, personagens como Missy, de “Young Sheldon”, Gia, de “Euphoria” e Casey de “Atypical” conquistaram a empatia do público por viverem nas sombras de seus irmãos. Na vida real, a trend glasschild recebeu críticas dos usuários do TikTok, que afirmavam que a existência do termo era por si só capacitista. Crescer cercado de controvérsias e responsabilidades é o grande fardo de uma glasschild. Às vezes, por trás de grandes histórias de superação, existem grandes irmãos e irmãs. 

Trecho da série "Young Sheldon" divulgado pela Netflix.

Trecho da série "Young Sheldon" divulgado pela Netflix.

Emanoelle dos Santos cresceu numa casa que é um cenário típico brasileiro. Uma mãe solo, seu irmão, uma cachorrinha e dois papagaios. Todos sob o mesmo teto no apartamento na capital de São Paulo. Para sustentar os dois filhos sozinha, a mãe de Manu trabalhava como enfermeira. Enquanto isso, a filha assumia as responsabilidades de uma irmã mais velha. Aos 8 anos, sua rotina caótica teve mais uma reviravolta: seu irmão, Marco Antônio, foi diagnosticado com dislexia, discalculia e déficit de atenção. “Foi uma descoberta para minha mãe. Eu sempre soube que meu irmão era diferente, já que tinha bem mais contato com ele.”

Hoje, aos 23 anos, ela relembra a época como um período conturbado, mas que fez com que ela e o irmão fossem grandes confidentes. “Eu vivi coisas com meu irmão que minha mãe não viveu. Ao ponto que eu daria minha vida por ele e eu sei que isso é recíproco”, relembra. Apesar de terem apenas 1 ano e 3 meses de diferença, o diagnóstico tardio fez com que Marco tivesse um atraso cognitivo: “Quando ele era menor, se ele tinha 7 anos, na verdade tinha 5. Isso fazia com que ele fosse bem mais inocente.”

Manu reconhece que o peso das responsabilidades, ainda que pareçam simples, criaram dentro dela um fantasma: a cobrança pela perfeição. “Eu sentia que tinha que ser a melhor versão de mim mesma para não dar mais trabalho para minha mãe, porque meu irmão já dava trabalho. Até hoje eu me cobro muito.” Ainda sobre seu amadurecimento, comenta: “Eu perdi a minha infância. É triste falar isso e é triste perceber isso. Quando tinha 13 anos as meninas falavam do primeiro beijo e eu ainda queria brincar de Barbie”. Desde muito nova, Emanoelle enxergava o mundo com maturidade.

A rotina das duas crianças passava por seus olhos como algo leve na época. Chegavam da escola, tomavam banho, esquentavam comida congelada no micro-ondas e assistiam desenhos até a hora de dormir. A deficiência do irmão fazia com que ela assumisse o papel de uma segunda mãe. “Eram dois bebês cuidando um do outro. Mais eu cuidando dele. Se você não desse na mão dele, ele não ia comer. Se você não mandasse tomar banho, ele não ia. Eu sinto que eu gerei o Marco Antônio sem ter gerado.” Na visão de uma criança, Emanoelle não enxergava nada como uma grande responsabilidade. Seu maior medo, era de que descobrissem que ela e o irmão ficavam sozinhos em casa. “Até hoje morro de medo do conselho tutelar.” 

Hoje em dia, Emanoelle e Marco Antônio têm uma relação de companheirismo e amizade. Manu foi o apoio do irmão durante toda a adolescência. Foi quem teve a conversa mais temida da puberdade, quem perguntava das namoradinhas e quem ouviu sobre as dificuldades de trocar de escola. Foi a pessoa que acompanhou de perto quando as pessoas duvidavam da capacidade de seu irmão e quem ouviu “Você não é minha mãe!” toda vez que eles se desentendiam. Foi quem não se mudou para o Rio de Janeiro após passar em Engenharia na UFRJ, porque tinha medo do que aconteceria com seu irmão e sua mãe sozinhos em sua casa. Emanoelle é a irmã que abriu mão do sonho de ser cantora para que o irmão seguisse a carreira de animador. E é Emanoelle quem afirma: “Faria de tudo novo porque é ele”.

“Eu sentia que tinha que ser a melhor versão de mim mesma para não dar mais trabalho para minha mãe, porque meu irmão já dava trabalho. Até hoje eu me cobro muito”

Emanoelle dos Santos

Bárbara Valentine é baiana de nascimento e paulista de criação. Ela morou com sua mãe e sua irmã mais velha na Zona Leste da capital. Ivana Valentine tem paralisia cerebral leve e dislexia aguda. Apesar dos quatro anos de diferença, Bárbara sempre assumiu a rotina de cuidados da irmã. “Minha mãe sempre trabalhou fora, então em algum momento passou a ser responsabilidade minha. Fazer comida para nós duas, levar ou buscar ela em algum lugar e até mesmo ajudar em deveres escolares.” 

Os deveres não-escolares aumentaram ainda mais com a chegada de seu irmão mais novo, que hoje em dia tem 10 anos. As responsabilidades assumiram a rotina da jovem, que afirma: “Essa rotina me impediu de viver parte da minha adolescência.” 

A administração do tempo da mãe não era um problema somente para a entrevistada. Mesmo com a ajuda de Bárbara, a irmã também sofria as consequências da falta da rede de apoio na grande São Paulo: “Minha mãe sempre trabalhou muito, então era difícil dar atenção tanto a mim quanto à minha irmã. A divisão então era bastante injusta para as duas. Minha irmã não tinha os cuidados necessários, consultas por exemplo, por uma falta de tempo da parte da minha mãe.”

Hoje em dia, a jovem se divide entre a vida familiar em São Paulo e a vida de estudante na UFRJ. As ligações são a forma de estar presente na vida da família, demonstrar o carinho e a preocupação. 

Enquanto constrói seu futuro carioca, o passado paulista ainda é um assunto que traz à tona os ressentimentos. Apesar da relação tranquila, Bárbara acredita que sem a relação de cuidados em excesso ela e a irmã seriam mais próximas: “Acredito que conversar sobre a diferença da nossa dinâmica familiar me faria sentir menos ‘injustiçada’ com a quantidade de responsabilidades. E também faria minha irmã sentir menos dependente e mais autônoma. Ela ainda é a mais velha e, por isso, às vezes temos muitos conflitos em relação a ela se sentir ‘cuidada’ e ‘mandada’ por mim. Acredito que existe toda uma vontade de ser independente por parte dela”. 

“Essa rotina me impediu de viver parte da minha adolescência” 

Bárbara Valentine

Camila Souza tem 20 anos e é carioca. Ela sempre morou com sua mãe e seu pai, que são casados há mais de 24 anos. Mas seu irmão e irmã mais velhos viviam transitando entre a casa do pai, em Rio Comprido, e de sua ex-esposa, em Vicente de Carvalho. Aos 15 anos, sua irmã Caroline Lima passou a morar com eles de vez. A mudança de casa também iniciou uma mudança na dinâmica da família, que passou a lidar com a dependência química de Caroline. “Foi o nosso tempo de maior proximidade. Mas a minha família ficou anos destruída, tentando se moldar o tempo inteiro para resolver uma pessoa.”

Os problemas começaram no fim de 2019. Camila estava nos primeiros anos do Ensino Médio, enquanto a irmã começava o curso de Direito na UERJ. Os avós da jovem foram os primeiros a notar as mudanças de comportamento, e logo toda a família percebeu o que acontecia debaixo de seus narizes: “Ela ia para o quarto e se trancava, ficava 15 minutos trocando de roupa. E quando saía você sentia sinais de que ela estava alterada. Nessa mesma época minha mãe mexeu nas coisas dela e achou um liquidozinho estranho. O meu pai abriu e assim que sentiu o cheiro já se sentiu meio tonto. Era loló”.

A família toda demonstrou apoio logo de início, e Caroline foi internada no Instituto Philippe Pinel. Lá, ela recebeu a receita para remédios que tratassem suas alucinações frequentes. Esse foi o grande gatilho para que a irmã mais velha fugisse de casa. “Nessa época minha vida virou de cabeça para baixo, porque eu tinha acabado de fazer 15 anos. E as coisas eram muito claras, eu não era mais uma criança. Meu pai ficou totalmente destruído. Ele se sentia muito culpado até de comemorar meu aniversário com uma filha desaparecida.” No final de 2021, Camila resolveu procurar acompanhamento psicológico. Ela afirma ter encontrado na falta sensibilidade um mecanismo de defesa. Mas ignorar os sentimentos à sua volta não fez com que os problemas dentro de casa desaparecessem. 

Em 2022, quando a família toda perdia as esperanças, eles receberam uma grande reviravolta na história. Uma ligação do Peru, de um homem que entrou em contato com a polícia dizendo ser o marido de Caroline, que estava internada num hospital psiquiátrico e grávida de 4 meses. O que foi um momento de felicidades e alívio para seu pai, foi um dos piores momentos para Caroline: “Na volta dela eu sofri muito mais do que quando ela estava longe. Não é mágico como as pessoas acham que é. Eu fiz muitos anos de acompanhamento psicológico, mas 2022 foi o ano em que eu mais me perdi de mim. Eu não me deixava cair, porque via o quão pior meu pai estava. Eu precisava segurar a barra para que ele soubesse que tinha todo o apoio do mundo e que tudo ia dar certo”.

Hoje em dia, as duas não têm mais contato por escolha da entrevistada. Mesmo após a recuperação, a irmã continua com surtos psicóticos e isto afeta a saúde mental da irmã mais nova. “Ela é muito esperta, e sempre foi. Ela estudava em colégio particular com bolsa. Com 17 para 18 anos ela já fazia direito na UERJ. Uma coisa que nunca faltou foi conhecimento. Eu acho que sua experiência de vida influencia mais do que qualquer coisa. Eu nunca usei nenhum tipo de droga. A minha adolescência inteira, quando as pessoas estavam experimentando, eu já sabia o resultado de tudo isso em casa. Me assustava.”

“Foi o nosso tempo de maior proximidade. Mas a minha família ficou anos destruída, tentando se moldar o tempo inteiro para resolver uma pessoa” 

Camila Souza

Na foto, eu (direita) e meu irmão, Mateus, em 2010.

Na foto, eu (direita) e meu irmão, Mateus, em 2010.

Marcela Elis é a estudante de jornalismo que assina essa matéria. Eu nasci, cresci e provavelmente vou morrer em Guarulhos. Na minha casa, todos temos a mesma inicial. Minha mãe “Monica”, meu pai “Marcos” e meu irmão “Mateus”, que foi quem inspirou essa matéria. Hoje em dia eu tenho o péssimo costume de falar sozinha. Minha mãe uma vez disse que se sente mal por eu ser assim, porque ela acha que tudo isso é consequência de ter sido uma criança sem ninguém para brincar. Menos mal, isso me tornou uma boa comunicadora. 

Por muito tempo, eu não entendia o que era exatamente minha relação com o meu irmão. Na infância, ele era uma pedra no meu sapato. Hoje em dia, ele é quem me motiva a seguir tentando. A cada ano que passa, ele contraria os médicos que disseram que alguém com paralisia cerebral teria poucos anos de vida e me ensina toda vez sobre perseverança, como um bom irmão mais velho deve.  

Crescer sendo a responsável, perdendo atividades extracurriculares e algumas noites de sono pré-prova, foi algo que por muito tempo fez com que eu me sentisse injustiçada. Hoje em dia, acho que disso tudo até que algo bom saiu. Crescer como uma criança de vidro foi uma grande prévia da vida adulta. Sou uma grande neurótica que não sabe errar, mas pelo menos aprendi de camarote o que significa empatia e inclusão. 

Dedico essa matéria a todas as pessoas com deficiência que lutam pela sua independência, a todos os irmãos que também são meio pais e ao meu irmão Mateus, por todas as noites em que eu tive menos medo do escuro porque ele dormia no mesmo quarto que eu.