Barreiras para a Barreira do Vasco

Como comerciantes da comunidade sobreviverão ao período de reforma em São Januário?

São Januário e sua íntima ligação com a Barreira (Divulgação: Vasco da Gama)

São Januário e sua íntima ligação com a Barreira (Divulgação: Vasco da Gama)

No dia 18 de junho de 2024, a reforma do estádio de São Januário foi aprovada na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, gerando celebrações efusivas entre os torcedores do Vasco da Gama. Mas por trás de um grande projeto, há um grande receio. As obras, que prometem modernizar o espaço e aumentar as fontes de renda do clube, também despertam preocupações significativas entre os moradores e comerciantes da Barreira do Vasco, a comunidade que vive ao redor do estádio e mantém uma relação íntima com o dia a dia do clube.


Em dias de jogos do Vasco da Gama, é normal observar uma grande quantidade de comerciantes e ambulantes ao redor da concentração da torcida. Bairros como São Cristóvão e Benfica, que compõem a área, são muito beneficiados com a movimentação que as partidas trazem, girando a economia local e garantindo o sustento de muitos vendedores. Mas com certeza, quem mais depende desses eventos são os moradores da Barreira do Vasco.

Uma das comunidades mais carentes do Rio de Janeiro, a Barreira ficou conhecida por ser muito ligada ao dia a dia do clube, já que o estádio de São Januário se localiza ao lado. Essa relação, claro, evoluiu para uma dependência dos moradores com o Vasco. Com uma grande movimentação recorrente em dias de jogos, muitos residentes se organizam para atuarem como ambulantes, ou abrirem um comércio próprio na região e conseguirem o seu sustento. Vânia Rodrigues, presidente da Associação de Moradores da Barreira do Vasco, explicou essa dependência: “Não existe ambulante ou comerciante que vive dos dias de jogos, até porque tem meses que o Vasco só joga uma partida em casa. Mas esses moradores usam esses dias de partida para garantir o sustento, pagar um aluguel, coisas básicas para as pessoas. E não só dias no futebol, mas natação, esse ano voltou o basquete que ajudou também. Tem outras modalidades que ajudam”.


"Esses moradores usam esses dias de partida para garantir o sustento, pagar um aluguel, coisas básicas para as pessoas."
Vânia Rodrigues, presidente da Associação de Moradores da Barreira do Vasco

Entorno do estádio concentra torcedores no pré-jogo (Divulgação: Daniel Ramalho)

Entorno do estádio concentra torcedores no pré-jogo (Divulgação: Daniel Ramalho)

Vânia encontra Pedrinho, presidente do Vasco, em evento de caridade à Barreira do Vasco (Reprodução: Instagram)

Vânia encontra Pedrinho, presidente do Vasco, em evento de caridade à Barreira do Vasco (Reprodução: Instagram)

À princípio, a reforma traria pontos positivos para a comunidade, já que a área seria revitalizada. “Eu acredito que nós vamos ganhar em pontos turísticos. Vai ser um local muito visitado, não só por torcedores do Vasco mas pessoas que gostam do Rio de Janeiro, gostam de ver lugares como São Cristóvão e Barreira do Vasco bem. Vamos sofrer por um lado, mas ganhar por outro. As pessoas vem conhecer, tirar uma foto antes e durante, vir de longe, e conhecer a realidade. Eu creio que vamos ser impactados grandemente, um ano de luta, mas também vão vir pessoas conhecer nossa realidade”, disse Vânia, esperançosa pela melhoria na qualidade de vida da Barreira do Vasco.

Existem motivos para essa demanda da população. Desde o início do projeto da reforma, muito antes de ser aprovado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, os idealizadores garantiram que a obra iria integrar a Barreira do Vasco com o estádio, garantindo uma revitalização da área. O slogan para essa campanha foi “Sem barreiras para a Barreira” e contava com a criação de uma esplanada que uniria os dois locais. O Vasco utilizará 10 mil metros quadrados da área do complexo para a esplanada, abrindo seu terreno ao público, sem barreiras, democratizando o acesso na fachada voltada para a comunidade. Durante a apresentação do plano, Sérgio Dias, arquiteto principal, se referiu ao tema como “essencial e condizente com a história de inclusão e respeito do Vasco”.

Projeto de reforma do estádio busca revitalizar comunidade e seus arredores (Divulgação: Vasco da Gama)

Projeto de reforma do estádio busca revitalizar comunidade e seus arredores (Divulgação: Vasco da Gama)

Mas por outro lado, a reforma traz preocupações para a população que depende do comércio em dias de jogos para sobreviver. Um estudo feito pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 2023, mostra que os vendedores locais são totalmente impulsionados por jogos do Vasco e a receita é reduzida em 60% nos meses em que o clube não atua em sua casa. Débora Nascimento, comerciante de bolos da região, demonstra incerteza sobre o período de obras, estimado em dois anos: “o impacto faz diferença, os faturamentos são maiores em dias de jogos. Difícil pensar como vai ser. Claro que temos um público fiel, que sempre compra independente do dia, mas em dias de jogos isso aumenta. Eu consigo sair mais cedo quando tem partida porque alcanço minha meta de vendas, posso curtir minha família. Todo mundo comenta sobre isso, a gente fica preocupado se vai impactar ou não na nossa vida. É questão de lógica, se tiver menos movimento, é menos dinheiro que entra”.


"A gente fica preocupado se vai impactar ou não na nossa vida."
Débora Nascimento, comerciante da Barreira do Vasco

Débora não só depende do Vasco para seu comércio, mas também é torcedora fanática do clube (Reprodução: Instagram)

Débora não só depende do Vasco para seu comércio, mas também é torcedora fanática do clube (Reprodução: Instagram)

Barreira luta por dignidade lado a lado com o clube (Divulgação: Daniel Ramalho)

Barreira luta por dignidade lado a lado com o clube (Divulgação: Daniel Ramalho)

Moradores da comunidade lutam contra o preconceito sofrido diariamente (Reprodução: Instagram)

Moradores da comunidade lutam contra o preconceito sofrido diariamente (Reprodução: Instagram)

Essa realidade foi experimentada pela população local em junho de 2023, mas de forma diferente. Após uma derrota do Vasco da Gama para o Goiás por 1x0, torcedores do clube organizaram uma grande briga com o policiamento do lado de fora do estádio, culminando em uma punição de 4 jogos como mandante com portões fechados. Posteriormente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro suspendeu o uso de São Januário por tempo indeterminado, citando o fato do estádio estar localizado no entorno da Barreira do Vasco, onde há “disparos de armas de fogo oriundos do tráfico de drogas lá instalado, o que gera insegurança para a  realização de jogos de futebol no local”, segundo relatório do juiz Marcello Rubioli. O trecho foi muito criticado pela opinião pública e chegou a ser denunciado no STF como racismo. Durante esse período, segundo Vânia Rodrigues, a honra dos moradores da comunidade foi ferida: “Foi uma loucura, uma decisão totalmente apoiada no que dizem sobre a favela, sobre os maus que dizem sobre nós, sem ter um pingo de amor, responsabilidade. Ninguém teve a preocupação de conhecer a favela. Foi mais fácil condenar”. Porém, a presidente da Associação de Moradores sempre faz questão de ressaltar a dificuldade que o período trouxe às finanças da população local. “Os comerciantes foram proibidos de trabalhar, a verdade é essa. Não tivemos opção, foi assim que nossa favela ficou. Tiveram pessoas desempregadas, porque haviam depósitos que o dono teve que demitir os funcionários pela falta de movimento. Chefes de família que ganhavam seu sustento dessa forma precisaram sair de casa porque não conseguiam pagar aluguel. Foi difícil, eu senti na pele o que os outros passaram”, disse Vânia, com a voz embargada.

Se o impacto da falta de movimentação dos torcedores em apenas 1 mês já foi muito prejudicial para a Barreira do Vasco, assusta a possibilidade de ficar dois anos sem partidas no estádio. Para o comércio local, será uma realidade difícil e uma mudança radical no dia a dia da comunidade. Pedro Henrique Melo, um dos idealizadores do projeto, garante que algumas medidas já vêm sendo tomadas junto a diretoria do Vasco para dar suporte aos moradores nesse período: “O presidente Pedrinho já externou essa vontade de ajudar o pessoal da Barreira do Vasco algumas vezes, inclusive incluindo as pessoas que vivem lá nas obras durante o tempo da reforma. Eu acho muito válido porque são pessoas que vivem em função do Vasco, então a gente não pode simplesmente deixar elas de lado, mas sim trabalhar para poder amenizar esses impactos”. A diretoria do clube vem mostrando entender o seu papel na relação com a comunidade, e isso pode ser visto frequentemente em campanhas solidárias organizadas pelo Vasco para auxiliar a Barreira. “A gente viu o que aconteceu no período sem jogos no ano passado, a torcida também se mobilizou com muitas doações, os próprios jogadores foram muito importantes nisso, então nosso sentimento é que o Vasco é uma família, e isso não pode se perder”, disse Pedro Henrique.

Pedro Henrique participou ativamente de pontos cruciais do projeto de reforma (Reprodução: Instagram)

Pedro Henrique participou ativamente de pontos cruciais do projeto de reforma (Reprodução: Instagram)

A angústia preenche o coração dos moradores enquanto as soluções não são dadas, mas a esperança também se faz presente. A Barreira do Vasco é uma das comunidades mais pobres do Brasil, e uma reforma desse tamanho pode sinalizar mudanças significativas para a região. No fim das contas, o desejo de todos é a melhora na qualidade de vida. “A gente espera que depois da reforma tenha um ciclo novo pra Barreira do Vasco, uma mudança radical, para que todos sejam mais valorizados”, diz Vânia Rodrigues, que finaliza: “Tomara que depois dessa reforma, quem nunca veio, queira vir, e quem venha, queira ficar”.