Afeto em meio à Ditadura Militar

Encarcerada nos Anos de Chumbo, Nair Benedicto relata solidariedade como ato de resistência

Ao voltar da sessão de tortura em pau-de-arara, Nair Benedicto recebe pequenos presentes em sua cela. Um pedacinho de chocolate, um pouco de pipoca, meio pacote de biscoito. Coisas mínimas. Mas para quem passou as últimas três horas sendo brutalmente agredida, esse era um sinal de que não estava sozinha. Jovem, estudante, casada, e com três filhos, Nair foi presa e torturada. Passou nove meses encarcerada; os dois primeiros, incomunicável. O motivo da prisão, até hoje ela não sabe. “Agora me dá vontade de rir quando lembro que recebi meio chiclete. Mas a solidariedade é uma coisa que a gente deve tratar com muito carinho. Ela é fundamental, e em certas horas, insubstituível”, contou.

A realidade polvorosa

Em outubro de 1969 Nair imergiu na “realidade polvorosa”. Chegando na USP, onde cursava Rádio e Tv, ela notou um clima estranho, “tudo meio parado”. Nenhum de seus professores, ou amigos da faculdade estava lá. Sem entender a situação, voltou para casa, mas também não encontrou os filhos, que já deveriam ter chegado da escola.  Desesperada, foi atrás deles. Ao sair correndo do carro, um policial empurrou seu peito e a jogou de volta. Nair tentou discutir com os oficiais: “Falei que estava preocupada com a minha mãe, que era uma pessoa idosa e tinha ido buscar as crianças, mas eles me olhavam com absoluto desdém, dizendo: preocupada com a mamãe? com as filhinhas?” Pelo tom de voz, percebeu que “não estavam a fim de saber sobre qualquer preocupação”. Por isso, resolveu ficar quieta.

No DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), os métodos de tortura não se limitavam a agressão física. Assim que chegou, Nair foi interrogada sobre quem era o homem negro que estava sempre na sua companhia. “Respondi que era um colega de faculdade, mas insistiram em dizer que era meu guarda-costas. O policial não me perguntava, ele afirmava. Tinha decidido que era isso”, contou. Na medida em que a discussão ficava pesada, Nair decidiu mudar de assunto. Sua mãe, segundo os policiais, teria ido para o pau-de-arara, e depois, encaminhada ao hospital. Partindo para a tortura psicológica, avisaram que caso ela não revelasse a identidade do homem negro, o próximo a ser torturado seria seu filho Frederic, que na época tinha menos de 2 anos de idade. “Não duvidei nem por um segundo que eles tinham colocado minha mãe no pau-de-arara, e eu não tinha dúvida que seriam capazes de colocar meu filho”, ela lembra.

A rede de afeto

Em meio às tensões da luta política, o convívio dentro das celas criou situações excepcionais de acolhimento e solidariedade. Funcionária pública, Lúcia era uma pessoa de classe média, que estava presa pois o filho havia roubado seu passaporte.  Para Nair, ela estava “no auge de suas contradições”, já que pregava o ódio pela esquerda, mas oferecia cuidado e atenção da melhor maneira possível. “A Lúcia me falava: quer café? Quer um leite quente? Senta aqui, eu te ajudo”, relata Nair. Além do afeto, Lúcia também buscava ajudar através de conselhos. “Ela disse para eu tentar dormir. Pediu que eu rezasse para não ser chamada antes do café da manhã, porque os que eram chamados nesse horário, iam para a tortura”.

Apesar dos avisos, algumas medidas eram inevitáveis: “No dia seguinte, fui chamada antes do café da manhã. Fiquei em pau-de-arara por cerca de três horas e meia. Quando resolveram me tirar, vi que não conseguia ficar de pé. Eu estava praticamente nua, e tentava colocar a blusa, mas estava com tanto medo, que juntei todas as forças que tinha para conseguir me vestir.” Após viver momentos aterrorizantes, Nair conta que ao chegar na cela, Lúcia a aguardava prontamente: “Ela pegou uma caneca, começou a me lavar os cabelos, o rosto, e falava: Nossa! Como posso te ajudar? Quer água?” Emocionada, Nair relata que o momento foi extremamente marcante na sua trajetória em cárcere: “Foi esse afeto que me deu forças para continuar”.

Sororidade e a união feminina

Devido a algumas medidas administrativas, 13 presidiárias foram transferidas do DOPS para o Presídio Tiradentes. Entre elas, Nair. Lá, essas mulheres tinham apenas a companhia uma da outra. “Retiraram absolutamente tudo que tínhamos, pois tudo era considerado muito perigoso. Literalmente só tínhamos nós mesmas”, conta Nair. Foi nesse contexto que cartas de amor escritas por presas comuns iniciaram um laço de afeto em meio ao caos. “Algumas cartas tinham manchas de gordura, outras letrinhas redondas bem feitas, outras com letras que iam para cima e para baixo. Foi interessante a gente ter, de repente, uma coisa mais carinhosa do que a gente tinha tido até então”, lembra Nair. 

Conhecido popularmente como Torre das Donzelas, o Presídio Tiradentes foi palco de memórias compartilhadas. Momentos de ansiedade e tortura são relatados, mas há um enfoque nos mecanismos de resistência ao cárcere. A resposta está numa sororidade muito exitosa: as mulheres promoviam recreações, compartilhavam conhecimento, e promoviam o apoio mútuo – além de realizarem descobertas sobre a sexualidade. “Foi uma relação que transformou o medo, o receio, a incompreensão. As convencionais [como eram chamadas as presas comuns] foram excelentes aliadas, elas nos ensinaram muito”, ressalta Nair

O poder do afeto foi além das demonstrações de carinho, estreitando laços através da troca de conhecimentos: “Quando perguntávamos o porquê de estarem presas, elas não falavam o motivo, diziam apenas o número do artigo referente ao crime. A gente começou a aprender os artigos, o que eram, a que se referiam.” A possibilidade de troca também contribuiu para o desenvolvimento de mecanismos de sobrevivência dentro do presídio: “Elas nos ensinaram como usar a Tereza. Tereza pra nós era o nome de uma pessoa. Mas não, a Tereza é um artifício que você gruda pedaços de tecidos, e joga forte pela grade para o outro grupo de pessoas. É assim que a gente recebia e mandava as coisas".

A vida após o caos

Posta em liberdade após quase um ano, procurou acalmar os filhos, voltar aos estudos e retomar a vida. Em 1972 concluiu a graduação. Queria trabalhar com televisão, mas para isso precisava ter uma boa reputação, o que, como ex-presidiária, não conseguia. Impedida de trabalhar com TV, Nair se refugiou na fotografia. Em plena vigência do AI-5, poderia utilizar esta ferramenta para denunciar as atrocidades da ditadura. Poderia, mas não fez: optou por seguir a vida, tentar esquecer o passado e focar no futuro. Decidiu usar a fotografia para denunciar as desigualdades sociais; fez um meio para atingir um fim: a justiça social. Tornou-se uma das mais respeitadas fotógrafas brasileiras, com alcance internacional. Aos 83 anos, Nair ainda segue trajetória na fotografia, mas sempre carregando “resquícios horríveis dessa realidade polvorosa”.