A câmera está capturando a superexposição infantil na mídia
Crianças e jovens se tornam “influencers” e lidam com os riscos ocultos por trás das telas

A superexposição infantil na mídia tem gerado preocupações significativas, especialmente no contexto das redes sociais e da influência digital. Até que ponto uma criança pode influenciar alguém ou ser influenciada? Esta questão se torna ainda mais complexa quando consideramos que muitas crianças e adolescentes hoje são protagonistas de canais populares no YouTube e em outras plataformas.
Um exemplo marcante é Isabel Magdalena, do canal do YouTube "Bel para Meninas”, que começou sua jornada de exposição com 8 anos. Aos 13 anos, Bel enfrentava a pressão de lidar com um público de mais de 7 milhões de seguidores, que despertou preocupações com seu bem-estar emocional.
Em 2020, a situação da pequena youtuber gerou indignação por parte de seus seguidores e levou à hashtag "SalvemBelParaMeninas" aos trending topics do antigo Twitter. Com intuito de alertar sobre o cenário enfrentado pela menina em seus vídeos publicados, que iam desde de compras de material escolar a desafio com comidas.
A responsabilidade de manter um canal com milhões de inscritos e lidar com comentários e likes coloca um peso enorme sobre os ombros de uma adolescente que cresceu sob os holofotes da vida pública desde cedo.
O caso de Isabel reflete um dilema mais amplo: a popularização precoce na infância ou adolescência, que pode trazer tanto oportunidades quanto riscos futuros. A discussão sobre a superexposição infantil na mídia abre um debate crucial sobre a privacidade e segurança das crianças e adolescentes no mundo online.
A prática do "sharenting", fenômeno cada vez mais comum e complexo entre os responsáveis, embora motivada pela liberdade de expressão ou pela busca de reconhecimento e retorno financeiro, os torna vulneráveis a variados perigos.
Isabel Magdalena aos 13 anos é protagonista do canal 'Bel Para Meninas', com 7 milhões de inscritos no YouTube Foto: Reprodução/Facebook
Foto: reprodução/
Após polêmica, Francinete Peres, a mãe de Bel, fechou o acesso dos internautas a todos os vídeos que tinha com as filhas no Youtube Foto: Reprodução/ Instagram @fran_bel_nina_oficial
Foto: reprodução/

O que é “Sharenting”?
O termo, que combina as palavras "share" (compartilhar) e "parenting" (cuidado parental), se refere ao hábito dos pais em compartilharem excesso de informações e dados íntimos de seus filhos nas redes sociais e na internet. Essa tendência foi nomeada pelo The Wall Street Journal, em 2012, ao descrever o fenômeno que, segundo o Dicionário Collins, é a divulgação frequente de detalhes pessoais das crianças por parte de seus responsáveis legais nas mídias públicas.
Em 2018, um estudo do Children's Commissioner da Inglaterra, intitulado "Who knows what about me?" (Quem Sabe o Que Sobre Mim?), analisou a coleta e o compartilhamento de dados de crianças e adolescentes. A pesquisa considerou desde câmeras de monitoramento de bebês até brinquedos conectados à internet e, especialmente, o uso de mídias sociais.
O resultado foi que pais de crianças de 0 a 13 anos compartilham, em média, 71 fotos e 29 vídeos por ano, totalizando cerca de 100 conteúdos anuais. Aos 13 anos, isso resulta em aproximadamente 1.300 publicações, com o número sendo ainda maior para filhos de figuras públicas, cujas imagens também são postadas por contas de fãs, campanhas publicitárias e sites de fofoca.
Essa exposição precoce permite que terceiros, inclusive algoritmos de plataformas, tenham acesso a informações detalhadas sobre a criança, como a escola que frequenta, seu nome, lugares que visita e atividades extracurriculares.
Recentemente, um relatório da ONG Human Rights Watch, apontou fatos que comprovam o uso de 170 fotos e informações sigilosas de crianças brasileiras extraídas da internet foram usadas indevidamente para alimentar bancos de dados de inteligência artificial (IA). Casos criminosos cometidos contra crianças, a partir de informações publicadas nas redes sociais ou até mesmo de crimes situados no ambiente digital, são exemplos alarmantes.
É importante frisar que no Brasil ainda não existem medidas legislativas específicas para proteger dados e regular a privacidade infantil no contexto digital, isso é enfatizado pela assistente social Aline Fernanda de Oliveira, que destaca: “Além do Estatuto da Criança e do Adolescente prever no Artigo 18, é dever de todos evitar que as crianças e os adolescentes sejam expostos a situações vexatórias ou constrangedoras, baseado nisto e nas legislações existentes. Ademais, o próprio ECA dispõe que a exposição exagerada de informações sobre a criança ameaça à intimidade e ao direito à imagem, por se tratar de sujeito de direitos em formação com absoluta prioridade”.
"Acho que a maldade das pessoas não precisa chegar até uma criança, independentemente de sua idade”

Sou famoso e agora?
Com o constante crescimento das mídias, novos desafios para manter a proteção e segurança da privacidade dos jovens estão surgindo, e a pressão para conquistar reconhecimento é um dos principais pontos que ninguém fala sobre ser famoso durante a infância.
Porém, não é estranho pensar nos riscos da glamourização do trabalho infantil na TV, no cinema, na música e atualmente, também nas mídias sociais? Crianças com canais no YouTube e perfis no TikTok, são reconhecidas como mini influencers.
A pesquisa realizada pela TIC Kids Online Brasil, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), revelou que aproximadamente 86% dos brasileiros entre 9 e 17 anos possuem perfil em redes sociais. Os aplicativos mais populares entre eles são Instagram e TikTok.
Os dados confirmam que existem milhões de usuários mirins no Brasil em busca do estrelato, e que a exposição de crianças na internet tem se tornado cada vez mais comum. Vídeos e trends estão sendo publicados especialmente baseados em situações constrangedoras, justificadas pela intenção de produzir humor, ganhar visualizações e transformar isso em um ganha pão.
Para a psicóloga e especialista no atendimento clínico de crianças e adolescentes, Klyne Thatcher, a pressão por “viralizar” na internet tem impactado significativamente a maneira como a geração atual é criada para lidar com a fama.
“Os efeitos do sucesso profissional precoce de crianças, na minha opinião, se dão por conta da exposição desenfreada dos comportamentos infantis como forma de diversão para os adultos que assistem e sentem prazer em constranger as crianças.”
"Quero que lojas parem de faturar com minha foto que virou meme", declara a jovem Fabiana Santoro sobre sua foto tirada durante uma viagem em 2010 Foto: Reprodução/O Globo
"Quero que lojas parem de faturar com minha foto que virou meme", declara a jovem Fabiana Santoro sobre sua foto tirada durante uma viagem em 2010 Foto: Reprodução/O Globo
"Quero que lojas parem de faturar com minha foto que virou meme", declara a jovem Fabiana Santoro sobre sua foto tirada durante uma viagem em 2010 Foto: Reprodução/O Globo
"Quero que lojas parem de faturar com minha foto que virou meme", declara a jovem Fabiana Santoro sobre sua foto tirada durante uma viagem em 2010 Foto: Reprodução/O Globo
O Projeto de Lei nº 2.628, de 2022, conhecido como PL do ECA Digital, dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais Foto: Reprodução/Unsplash
O Projeto de Lei nº 2.628, de 2022, conhecido como PL do ECA Digital, dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais Foto: Reprodução/Unsplash
O Projeto de Lei nº 2.628, de 2022, conhecido como PL do ECA Digital, dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais Foto: Reprodução/Unsplash
O Projeto de Lei nº 2.628, de 2022, conhecido como PL do ECA Digital, dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais Foto: Reprodução/Unsplash


Em qualquer outro contexto, o trabalho infantil é um absurdo, mas se torna glamourizado quando resulta em dinheiro e fama, especialmente no mundo digital.
Estes menores, que mantêm canais no YouTube e perfis nas redes do Facebook, TikTok e Instagram, captam a atenção de milhares de seguidores e de empresas que oferecem "mimos" a fim de produzir publicidades.
Além de se tornarem uma fonte de entretenimento, as plataformas digitais também são usadas como uma fonte de renda, e é cada vez mais comum que a "estrela" do comercial ou da campanha seja uma criança encantadora, ou descendentes de influenciadores, assim gerando muitas visualizações e, consequentemente, lucros.
Propaganda do Banco Itau com a pequena Alice de apenas 2 anos ao lado de outras celebridades
Pais postam e lucram
Essa tendência traz à tona uma questão alarmante: a superexposição infantil na mídia pelos próprios pais.
Um exemplo sobre o assunto envolve a influenciadora digital Viih Tube e o ex-participante do Big Brother Brasil, Eliéser, que têm causado controvérsias ao explorarem a imagem da filha primogênita, Lua di Felice, desde antes de seu nascimento.
Ao anunciarem a gravidez em abril de 2022, o casal criou um perfil no Instagram para a bebê, que alcançou 150 mil seguidores em uma hora e atualmente ultrapassa 2 milhões. O perfil da pequena Lua não é usado apenas para compartilhar momentos fofos ou marcos de crescimento, como é comum para muitos pais. Em vez disso, Viih Tube e Eliéser têm utilizado a popularidade da filha para campanhas publicitárias e lançaram uma linha de produtos infantis, a Babytube, com Lua como modelo principal, gerando mais de R$ 17 milhões em faturamento.
Em live no Instagram a influencer Viih Tube declara que a filha é milionária: "Juro por Deus. A parte dela das publicidades que ela gravou, ela já tem R$ 1 milhão, gente”. Foto: Reprodução/Instagram @viihtube
Em live no Instagram a influencer Viih Tube declara que a filha é milionária: "Juro por Deus. A parte dela das publicidades que ela gravou, ela já tem R$ 1 milhão, gente”. Foto: Reprodução/Instagram @viihtube
Em uma publicação de hate e crítica em relação ao casal na rede social “X”, o antigo Twitter, Eliéser tenta se defender ao dizer que ficou mais famoso e bem sucedido através da paternidade de Lua e não pelo seu matrimônio com a influencer Viih Tube, que acumula mais de 30 milhões de seguidores na internet.
Comentário do EX-BBB e influencer em resposta ao um tweet de hater Foto: Reprodução/X
Comentário do EX-BBB e influencer em resposta ao um tweet de hater Foto: Reprodução/X
A resposta do empresário e pai só reforça as críticas em volta da exploração da imagem da sua neném de apenas 1 ano de idade.
Muitos pais expõem seus filhos nas redes sociais visando reconhecimento e retorno financeiro, tornando o problema ainda mais complexo. Klyne Thatcher alerta para as consequências que esta exposição pode acarretar na vida dos blogueiros mirins.
“Crianças e adolescentes com vidas públicas se tornam reféns de comentários e likes como medidores para sua competência e valor, e é pesado para uma criança e um adolescente, indivíduos que estão em fase de desenvolvimento, que ainda estão construindo repertório comportamental e emocional para vida, precisar de um like ou comentário para ter certeza que é amado ou querido.”
É pesado para uma criança e um adolescente, que estão em fase de desenvolvimento, precisar de um like ou comentário para ter certeza que é amado ou querido”

Mamães influencers
Nesta era de influenciadores, também há mães que se tornam figuras públicas exclusivamente por causa da maternidade. Elas ganham seguidores ao compartilhar os passos da gravidez, relatos do parto, dicas de amamentação, introdução alimentar e estratégias para uma criação positiva. Uma delas é Milena Botelho, 23 anos, professora e também influencer ao lado da sua filha Maria Teresa, de 1 ano. O seu user nas redes, @mamaedeprimeira2023, acumula mais de 26 mil seguidores e é focado na rotina diária dela como mãe de primeira viagem.
Milena relata que já notou outras mamães blogueiras pararem de mostrar o filho(a) por conta de comentários negativos e sugestivos em relação à criança e que entende as razões, mas revela: “Até o presente momento não tive nenhum motivo pessoal que me levasse a pensar nisso”.
Ao contrário de Milena, Aurora Sucinta, uma das mães mais influentes do Tik Tok, alerta em seu perfil constantemente sobre os perigos de expor crianças nas redes sociais.
Aurora também partilhava o perfil com sua filha Liz, mas no começo de 2022, a influenciadora optou por não mostrar mais a criança nas redes, e explicou o porquê: “Ao invés de usarem a imagem dela para uma coisa boa, faziam figurinhas da minha filha com conteúdo sexual, político e conversas com ficante”. Após tomar a decisão e desvincular a imagem da filha do perfil com mais de 1 milhão seguidores, Aurora recebeu diversos comentários de ódio dos chamados “haters”. Com base em diversos episódios como o de Aurora, Milena declara:
“Nessa situação eu acredito que o melhor seria parar de expor. Acho que a maldade das pessoas não precisa chegar até uma criança, independentemente de sua idade”."
Os menores não têm maturidade para lidar com as consequências da exposição precoce, além de não terem escolhido voluntariamente ter uma vida pública baseada na popularidade e na internet desde cedo. Novamente, a psicóloga Klyne Thatcher reforça o tamanho do impacto que a superexposição nas mídias exerce na vida desses indivíduos.
“A criança que é exposta de forma excessiva, se torna alvo de conteúdos que não são adequados e esperados para sua fase de desenvolvimento. Outro ponto a ser observado é que quanto mais cedo a criança é exposta virtualmente, mais esse comportamento irá apresentar distorções a respeito de como essa criança irá se relacionar com as pessoas e os ambientes a sua volta, criando um padrão de interação que por vezes só é comum nesse cenário virtual”.
O caso da filha do casal de influenciadores Viih Tube e Eliéser e de Aurora Sucinta exemplifica como a fama e influência podem desvirtuar a distinção entre vida privada e pública, comprometendo o seu futuro.
A influencer de maternidade Milena Botelho, ao lado de Maria Teresa, na comemoração de 1 ano da filha Foto: Reprodução/Instagram @mamaedeprimeira2023
A influencer de maternidade Milena Botelho, ao lado de Maria Teresa, na comemoração de 1 ano da filha Foto: Reprodução/Instagram @mamaedeprimeira2023
Aurora Sucinta, famosa influencer de maternidade, parou de mostrar a filha Liz em seu perfil do Tik Tok após uso indevido da imagem da criança de 2 anos Foto: Reprodução/Instagram @ramosucinta
Aurora Sucinta, famosa influencer de maternidade, parou de mostrar a filha Liz em seu perfil do Tik Tok após uso indevido da imagem da criança de 2 anos Foto: Reprodução/Instagram @ramosucinta
Segundo a pesquisa da TIC Kids Online Brasil 2023, 95% da população de 9 a 17 anos é usuária de Internet no país, o que representa 25 milhões de pessoas. Foto: Reprodução/Unsplash
Segundo a pesquisa da TIC Kids Online Brasil 2023, 95% da população de 9 a 17 anos é usuária de Internet no país, o que representa 25 milhões de pessoas. Foto: Reprodução/Unsplash
SOS CRIANÇAS
Com o compartilhamento exagerado de conteúdos, mesmo que involuntário ou forçado, ocorre uma significativa violação da preservação pessoal e mental de crianças e adolescentes. Esse comportamento não apenas facilita a criação de material que pode ser usado para cyberbullying e bullying, mas também expõe os jovens a uma série de outras consequências negativas.
Segundo a psicóloga infantil, os efeitos prejudiciais incluem "baixa habilidade na interação social, maior distração, dificuldade para regular o sono, baixa tolerância à espera e abandono de atividades motoras, além de alterações emocionais como intensificação de sintomas depressivos, comportamentos agressivos e ansiosos”.
Conclui-se que toda questão relacionada à superexposição infantil na mídia é complexa e demanda uma abordagem cuidadosa. Em uma era onde a vida online é quase inevitável, é fundamental que os responsáveis monitorem os conteúdos que envolvem os menores. Atualmente, não há uma legislação específica que proíba a exposição de crianças na internet, apenas um projeto de lei (PL 4776/2023) em tramitação na Câmara dos Deputados, que busca assegurar o direito à privacidade de crianças e adolescentes.
A expressão "uma vez na internet, sempre na internet" serve como um alerta poderoso de que o conteúdo compartilhado hoje pode ter repercussões duradouras. Por isso, a assistente social Aline Fernanda oferece orientações sobre como investigar e denunciar as situações de exploração da imagem infantil:
"Através de denúncias realizadas pelos notificantes aos órgãos de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes, Conselho Tutelar, CREAS, Disque 100 e até nas escolas, um processo jurídico é instaurado, visando apurar e identificar os autores e os reais desdobramentos”.
É crucial que, à medida que as crianças se tornem adolescentes, elas sejam ensinadas a entender a importância de proteger suas informações pessoais e a conscientizar-se dos riscos associados à exposição online. Como bem pontuou Aline Fernanda, "é responsabilidade dos responsáveis limitar e assegurar o respeito e a segurança delas, conforme previsto nas medidas de proteção do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).”
