A resistência da cultura judaica em Copacabana

Um passeio por lugares que preservam os costumes de uma comunidade no coração da zona sul carioca

a bunch of candles that are lit up

Photo by Sara Rostenne on Unsplash

Photo by Sara Rostenne on Unsplash

Quando se fala em Copacabana, três imagens são comuns no pensamento das pessoas: o calçadão da praia, uma quantidade enorme de idosos e uma grande comunidade judaica. No centro da praça Cardeal Arcoverde, uma Chanukiá gigante, candelabro aceso durante o feriado do Chanucá, chama a atenção. Entre as ruas agitadas em torno, estão quatro sinagogas distintas, o maior número de qualquer bairro do Rio de Janeiro. Uma comunidade que foi crescendo ao longo das décadas, também foi estabelecendo locais que representassem sua cultura e pudessem a manter viva. Essa história inclui Nely Hochman, de 95 anos, que entre o mercadinho kasher, confeitarias e a sinagoga, tem seu dia a dia entrelaçado com esses lugares que representam o judaísmo.

É sábado e, às 10 horas da manhã, dona Nely sai de seu apartamento na esquina da rua Siqueira Campos. Ela caminha 5 minutos até a Sinagoga de Copacabana, na rua Capelão Álvares da Silva, em meio ao comércio agitado e ao som das buzinas do trânsito. Ela assiste a reza e, depois, coloca a conversa em dia com suas amigas. Essa é a rotina que inicia todos os seus fins de semana. Com quase um século de vida, o bairro de Copacabana é a sua casa há mais de cinco décadas e remete boas lembranças de uma vida tranquila e cheia de amor: “Eu diria que eu me encontrei aqui em Copacabana”.

Praça Cardeal Arcoverde (Reprodução: Emanuel Paiva)

Praça Cardeal Arcoverde (Reprodução: Emanuel Paiva)

Copacabana nem sempre foi seu lar, mas Nely já havia experienciado mudanças mais drásticas em sua vida. Nascida em 1928 na cidade de Lublin, na Polônia, ela viveu os primeiros anos de sua vida falando iídiche. "Eu saí de lá para o Brasil quando tinha 6 anos, morava na casa da minha avó, lembro que era muito movimentado", relembra suas memórias do país europeu.

Em 1934, Nely, sua mãe e seu irmão mais velho desembarcaram no porto do Rio de Janeiro para encontrar seu pai, que havia imigrado alguns anos antes, e recomeçar a vida em um lugar novo. Desde então, Nely nunca mais voltou à Polônia.

A família morou inicialmente no Centro, depois no Estácio e, após o casamento de Nely, no Méier. Ela se casou com outro imigrante polonês, Izrael Hochman, em 1958. Depois de 10 anos na zona norte, eles começaram a ver vários amigos e familiares se mudando para a zona sul, mais especificamente, para Copacabana: "Meu cunhado se mudou para Copacabana, para perto da praia, sempre pareceu um lugar bom, então nós resolvemos ir, e foi uma decisão boa". Em 1968, a escolha foi concretizada. A quatro quarteirões da orla, em um prédio de 10 apartamentos, dona Nely fez sua última deslocação geográfica.

Copacabana na década de 1970 (Reprodução: https://www.maioresde60.com/2020/01/avenida-ns-de-copacabana-rio-de-janeiro.html)

Copacabana na década de 1970 (Reprodução: https://www.maioresde60.com/2020/01/avenida-ns-de-copacabana-rio-de-janeiro.html)

"Esse prédio aqui, na época que foi construído e quando a gente se mudou, todos os dez andares moravam imigrantes judeus."

Foi isso que dona Nely disse ao ser perguntada sobre o que lhe chamou atenção em seus primeiros anos em Copacabana. Vinda de uma família judia e ortodoxa, ela, praticante até hoje, viu no bairro um lugar que poderia ser familiar.

"Eu senti que nós fomos bem acolhidos aqui", comenta.

Pensando na cidade do Rio e no quesito opções judaicas, Nely se mudou para o lugar certo. Ao longo do tempo, ela foi conhecendo e estabelecendo os locais que mais encapsulam essa cultura em sua rotina, constatando que apesar dos anos passarem, a cultura resiste:

“Eu acho que continua forte sim, pelo menos do que vejo e frequento, eu sinto que sim”.

Ela tem um mapa do bairro que inclui seus lugares judaicos mais frequentados.

A tradição kasher

A cozinha de dona Nely é toda duplicada. Duas pias, dois conjuntos de talheres, dois armários. Essa prática se chama kasher, que consiste em não misturar nenhum alimento derivado de leite com carnes animais, algo crucial na vida de Nely e de muitos outros judeus. "Eu mantenho a tradição kasher até hoje, a comida aqui em casa é toda kasher", declara. Tudo é milimetricamente organizado e ela explica com naturalidade algo que, para muitos, pode parecer estranho: “A louça de leite é lavada na área, tem um armário lá só para os utensílios de leite e a louça de carne a gente lava na pia, mas tudo é separado”. Comer kasher também implica comprar produtos no supermercado que tenham o selo de aprovação, assegurando que não há risco de contaminação.

Em meio a uma população majoritariamente cristã, pode ser difícil fazer compras no dia a dia. No entanto, em Copacabana, há algumas opções que ajudam judeus como Nely. Na rua Barata Ribeiro, logo após a entrada do Clube Israelita Brasileiro (CIB), é possível ver uma pequena rampa com um tapete vermelho e uma placa: Kosher Place.

Entrada do Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Entrada do Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Esse mercadinho é o local escolhido por dona Nely para realizar suas compras semanais: "Eu vou muito na vendinha do CIB, lá tem de tudo e é sempre kasher, é muito mais fácil do que procurar nos supermercados grandes". Ela conta que lá tem tudo o que ela precisa como carnes, salame, pães, produtos industrializados e até refeições congeladas para dias em que ela está com preguiça de cozinhar.

O Kosher Place foi criado em 2016, como forma de facilitar o acesso à alimentação kasher na comunidade judaica de Copacabana. Eles oferecem uma gama de produtos muito variada, funcionando como um mercado como qualquer outro. Assim como os supermercados tradicionais vendem preparativos para o Natal, no Kosher Place os judeus podem encontrar tudo que eles precisarem para comemorar os feriados judaicos, como velas de Chanucá e produtos para o Pessach.

"Na lojinha do CIB eu compro a farinha de matzá, então no Pessach eu já posso fazer tudo direitinho", conta Nely sobre onde ela vai para se preparar para o feriado.

Pão ázimo (matzá) vendido no Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Pão ázimo (matzá) vendido no Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

A tradição kasher é algo muito atrelado à cultura judaica.

"É importante para mim", ressalta dona Nely sobre manter esse hábito em sua vida.

A antropóloga e pesquisadora da Fiocruz Kátia Lerner explica a importância desses costumes para noções de cultura dessa comunidade. "A comida tem um lugar de definição de identidade e de manutenção das práticas culturais que se perpetuam ao longo do tempo", afirma. Ainda que o ato de comer kasher seja algo praticado por judeus mais religiosos, a especialista pontua a importância de lugares como o Kosher Place para a cultura judaica no geral e para memória afetiva: 

"Os mercados kasher são importantes não só para os religiosos, mas também para aqueles que não são e encontram nesses espaços determinados alimentos que remetem à cultura, como um determinado salame ou pão de mel que a pessoa comeu na infância".

Produtos vendidos no Kosher Place com o símbolo de certificação kasher. (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Produtos vendidos no Kosher Place com o símbolo de certificação kasher. (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Kosher Place (Reprodução: Ana Clara Hochman)

A sinagoga

Uma cena comum de se observar aos sábados em Copacabana é a de judeus ortodoxos caminhando até a sinagoga. Nely é frequentadora da Sinagoga Kehilat Yaacov, mais conhecida como Sinagoga de Copacabana. Fundada em 1956, é a mais antiga da zona sul do Rio de Janeiro e segue tradição ortodoxa e ashkenazi. Desde sua mudança para o bairro, dona Nely vai a essa sinagoga.

Fachada da Sinagoga de Copacabana (Reprodução: https://www.hmaarquitetura.com/sinagoga-copacabana)

Fachada da Sinagoga de Copacabana (Reprodução: https://www.hmaarquitetura.com/sinagoga-copacabana)

"Eu me dou muito bem com todo mundo, vou lá todo sábado há 55 anos", ela relata com um sorriso quando perguntada sobre sua relação com o lugar.

Além de um espaço para praticar a religião, a sinagoga promove a formação de laços, tornando-se um local de sociabilidade, principalmente para pessoas mais idosas como Nely, que não têm tantas atividades fora de casa. “Lá na sinagoga tem esse grupo de seis mulheres, a gente ficava conversando e ficamos amigas, a gente ia ao cinema todo domingo, antes da pandemia.”

A resistência da cultura

Nos últimos anos, Copacabana apresenta uma mistura de lugares antigos, que permanecem apesar do tempo, e outros novos, que estão surgindo e atraindo a comunidade. Mas, há também um crescimento do antissemitismo em um contexto atual. "Com a ascensão da extrema direita e com o conflito no Oriente Médio, a gente vê um aumento de olhares e comentários e de uma perspectiva discriminatória em relação aos judeus", alerta Kátia Lerner. 

Ela adiciona que locais como lojas kasher e sinagogas podem tornar esse grupo mais vulnerável, na medida que eles marcam a sua presença na cidade, mas também são resistência cultural:

"Esses lugares servem como fator de preservação e de existência dessa cultura, da história e da memória judaica".

O último local mencionado por Nely que, apesar dela não frequentar com tanto, ainda ocupa um espaço no seu coração, é a The Bakers. Localizada na rua Santa Clara, a confeitaria começou a partir de herdeiros da loja de doces Kurt, no Leblon. Trazendo a tradição judaica consigo para Copacabana e inaugurada em 1994, a The Bakers ficou famosa na cidade.

Fachada The Bakers (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Fachada The Bakers (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Hoje, muitas pessoas da comunidade, sejam religiosos ou não, a conhecem pela chalá, que é considerada uma das melhores do bairro. Dona Nely também compartilha dessa visão: “O The Bakers eu adoro, a Bety compra a chalá deles quase toda semana". Pão tradicional em muitas casas judaicas, a chalá está presente em diversas ocasiões.

“A chalá é uma coisa que tem toda semana aqui em casa, na hora de acender as velas a gente come um pedaço, é uma coisa que gosto muito”, diz Nely, descrevendo a sobre a recorrência do alimento em seus rituais diários.

The Bakers (Reprodução: Ana Clara Hochman)

The Bakers (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Produção de chalá (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Produção de chalá (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Chalá do The Bakers (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Chalá do The Bakers (Reprodução: Ana Clara Hochman)

A The Bakers também faz encomendas para feriados religiosos, como Pessach e Rosh Hashaná, e tem uma vasta diversidade de doces e salgados. Nos últimos anos, o estabelecimento tornou-se menos tradicional para atrair mais consumidores, apresentando decorações natalinas no fim de ano e venda de panetones

Mesmo assim, a confeitaria permanece conservando a cultura judaica, expondo os produtos típicos na vitrine e preservando os costumes dessa comunidade, que, como dona Nely, mantém-se fiel a esses espaços.

Produtos de Chanucá e Natal no The Bakers (Reprodução: Ana Clara Hochman)

Produtos de Chanucá e Natal no The Bakers (Reprodução: Ana Clara Hochman)