A bença, Atotô!
O papel das religiões de matriz africana no atendimento à saúde pública

Dizem que no pé do morro mora um velho curandeiro. Para ser atendido por ele, recomendam trazer um bocado de pipocas e saudá-lo dizendo “Silêncio”. Ou melhor, em iorubá, “Atotô”. Nas religiões de matriz africana a procura pela saúde passa pelo culto ao Orixá Omolu, o tal velho curandeiro. Um rezador que se veste coberto por palhas. Mesmo sendo religiões populares dentro da cultura brasileira, os rituais da Umbanda e do Candomblé são desconhecidos e discriminados por grande parte da sociedade, criada sob valores cristãos.
É então que, em julho, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) propôs reconhecer os templos religiosos afro-brasileiros como equipamentos complementares ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Apesar de se proporem ser científicas, as críticas à diretriz 46 da Resolução 715 do CNS, que promove esse reconhecimento, podem ter sido usadas para mascarar preconceitos. “Infelizmente, críticas muitas vezes são pivôs de um desencadeamento de intolerância. Tudo referente a nossa religião sempre tem que ser muito explicada por nós”, aponta Denise de Oyá, sacerdotisa responsável pela Tenda Espírita Pai Joaquim D’Angola, Centro de Umbanda de Oswaldo Cruz.
Os dados sobre descriminação religiosa preocupam quem tem fé nos Orixás, ainda que em 2023. O II Relatório sobre Intolerância Religiosa da UNESCO mostra que os ataques à religiões de matriz africana cresceram em 270%. Além deste estudo, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa ainda publicou que 91% dos casos registrados no Rio de Janeiro eram direcionados a terreiros de Umbanda e Candomblé.
Esse é o panorama que antecede a distorção de que essas religiões irão se tornar tratamento médico no SUS. Que antecede um comentário irônico sobre um paciente receber indicações de terreiros para visitar quando fosse atendido. Que antecede um oficial de justiça do Ceará, Ivan Dutra, zombar da recomendação.
Mesmo de frente para esta realidade, a comunidade das religiões de matriz africana apoia a aprovação dessa proposta.

Foto: Reprodução/Internet
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Representação de elégùn (médium) incorporando o Orixá Omulu, cultuado em algumas tradições como a mesma divindade que Obaluayê ou Xapanã
"As casas de Candomblé sempre foram espaços de acolhimento para os menos favorecidos, desde a época de formação dos quilombos"

De líderes espirituais a iniciantes, acredita-se que essa possa ser uma forma de, em conjunto com a medicina, reduzir internações e ser um meio de expandir a diversidade de práticas para a saúde. Para Tatiana Anjos, iaô (iniciada) no Candomblé na nação Ketu dentro do Ilê (casa) Axé Omin, localizado em Cachoeira de Macau, essa seria uma forma de “valorização, respeito, preservação e manutenção de saberes ancestrais de restauro do equilíbrio”.
Ou, até mesmo, um meio para reconhecer a atuação histórica de sua religião no cuidado.
O babalorixá Nilton D’Odé, sacerdote no Candomblé Ketu, iniciado no Ilê Asé Oju Obá Baru e com raízes dentro da religião que remetem à Joãozinho da Goméia – conhecido como “Rei do Candomblé” –, reforça esse papel: “É uma religião acolhedora e agregadora, histórica e fundamental para evolução de classes populares que foram desassistidas pelo poder governamental e por instituições que deveriam executar a função”.
As religiões de matriz africana se tornaram historicamente num local de acolhimento para minorias marginalizadas. Desde as etnico-raciais até as sexuais e de gênero, grupos recorrentemente excluídos da comunhão cristã. “As casas de candomblé sempre foram espaços de acolhimento para os menos favorecidos, desde a época de formação dos quilombos”, ressalta Tatiana, que tem o Candomblé presente em sua família desde a Tataravó iyalorixá (sacerdotisa).

O que sugere a resolução?

Buscando compreender a diretriz, ela não propõe estabelecer a Umbanda e o Candomblé como equipamentos médicos, mas sim como “equipamentos promotores da saúde e da cura complementares”. Para isso, apresenta dois pontos chave. O primeiro é o reconhecimento na promoção da saúde, como “primeira porta de entrada para os que mais precisavam” e como “espaço de cura para o desequilíbrio mental, psíquico, social, alimentar”. Falta de comida na mesa, dificuldade de acesso à saúde, à educação que promova boas oportunidades e falta de uma família bem estruturada são fatores que a iaô aponta para o desequilíbrio psicológico.
“O Candomblé sempre foi pioneiro em ações que promovem o desenvolvimento humano, buscando, dentro das particularidades do indivíduo, equilibrar essas questões”, afirma. O segundo ponto da diretriz é a preservação de culturas e povos de matriz africana, algo previsto nas políticas de saúde pública para patrimônios culturais da saúde, sendo uma forma de “combate ao racismo, à violação de direitos, à discriminação religiosa, dentre outras”.
Além de reconhecer o papel social histórico já citado, a resolução trata, na prática, da valorização das religiões afro-brasileiras como porta de acesso aos cuidados básicos para os mais necessitados. Esta é uma das formas que a Tenda Espírita de Denise procura ajudar sua comunidade. “Atuamos em todas as necessidades do próximo. Na nossa casa doamos cestas básicas, quentinhas para irmãos em situação de rua, emprestamos cadeiras de rodas. No nosso bairro somos muito bem recebidos, a comunidade participa e sabe que pode contar conosco.”
Com apoio dos filhos de santo, ainda são oferecidos atendimento fisioterapêutico gratuito, advocacia, reforço escolar, alfabetização, workshops para proporcionar meios de sustento e doação de roupas. A miséria, tal qual a insegurança e necessidade alimentar, geram impactos na saúde física e são questões da saúde pública.
"A comunidade participa e sabe que pode contar conosco"
Doação de Cestas Básicas pela Tenda Espírita Pai Joaquim da Angola
Doação de Cestas Básicas pela Tenda Espírita Pai Joaquim da Angola
“Me alinhou com a minha força interna. Me fez mais capaz de gerar soluções para minhas questões de vida.”
"Somos filhos de uma nação de uma pluralidade infinita, um bioma diverso e complexo, reflexo de culturas vindas de fora, adaptadas e ou nascidas aqui"
São também problemas de saúde pública os distúrbios emocionais e mentais, que levam ao adoecimento do corpo.
As religiões de matriz africana, como centros de acolhimento, confrontam estas questões. O Candomblé, por meio de rituais de cuidados com uso de ervas, rezas, alimento, escuta e reconexão com a ancestralidade através dos Orixás, trouxe muitos benefícios para Tatiana. Dentro de sua religião, além dos dois anos como iaô, antes foi abyan (iniciante) por mais um. “Tem um ritual específico para o equilíbrio da mente, para o fortalecimento do Orí (cabeça)... tudo isso foi crucial para a desfragmentação do expressar de minha existência no mundo”, conta Tatiana sobre a mudança que sentiu após entrar para sua religião, mesmo aos 44 anos. “Me alinhou com a minha força interna. Me fez mais capaz de gerar soluções para minhas questões de vida.”
O cuidado com a mente não é exclusividade do Candomblé. “Todos os dias lidamos com pessoas depressivas, com pensamentos suicidas, que por vezes até mesmo psicólogos nos encaminham”, relembra a Mãe de Santo Denise das vivências ao longo de 40 anos na Umbanda. Ela acredita que seu trabalho não seja só função religiosa, mas sim uma missão de amor e unidade, e citou testemunhos de estímulo ao autocuidado através de sua religião. “Chegar ao final de uma consulta dessas após uma limpeza espiritual, banho de ervas, preceitos, um acolhimento e ouvir ‘Muito obrigado, você salvou minha vida, agora enxergo que vale a pena viver’ não tem preço”, completa.
A visão é compartilhada pelo Pai de Santo Nilton, que diz já ter ajudado, ao longo de seus 35 anos de Candomblé, pessoas sofrendo ansiedade por conta da perda de emprego, fim de casamento e desencontro com a vida. Ele conta que no Candomblé se usufrui dos recursos naturais para extração de benefícios, que tratam não apenas da saúde espiritual, mas física, emocional e psicológica. E faz questão de pontuar que a fé age tanto na religião quanto na medicina convencional.
“Quando eu, líder espiritual, desperto o hábito de tomar um chá, usar o sumo de uma erva, usar ou fazer uma comida, é necessário ter fé. Quando o médico prescreve uma receita, indica um medicamento, ele precisa despertar no paciente o interesse em se cuidar e usar o medicamento numa rotina até obter cura. Isso também é fé.” Os processos e fundamentos são complementares no entendimento do babalorixá, que acredita na convivência e adaptação para que cada indivíduo atinja o melhor resultado e explica: “Somos filhos de uma nação de uma pluralidade infinita, um bioma diverso e complexo, reflexo de culturas vindas de fora, adaptadas e ou nascidas aqui”.

“A Umbanda e o Candomblé não estão entrando nesta batalha apenas com rezas."


Foto: Reprodução/Internet
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Foto: Roberta Guimarães/Revista Continente
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Foto: Alliane Padilha/Revista Senso
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Foto: Marcelo Camacho
Foto: Marcelo Camacho
Os dois sacerdotes também concordam que a aprovação da proposta pode ocasionar mais intolerância com a Umbanda e o Candomblé. O que não faz com que se abalem.
“Acredito que muitos irão fazer como já fazem, o olhar duvidoso, a incredulidade, fazer ofensas, e outros vão espalhar falsas notícias negativas”, afirma Denise de Oyá. Ainda que os ataques de outras religiões possam aumentar, isso não os fez achar negativo caso se abra um precedente para inclusão de mais religiões como complementares ao SUS. “Abriria precedentes para positivar as boas práticas humanas. Um babalorixá, médico, pastor, rabino, monge, padre ou curandeiro devem estar sempre prontos para atender suas comunidades. Com as mais atípicas, complexas ou comuns necessidades”, diz Nilton D’Odé.
A participação de cada crença é válida, mas a sacerdotisa faz sua ressalva: “Precisam entender que a Umbanda e o Candomblé não estão entrando nesta batalha apenas com rezas. Tem muito estudo e conhecimento envolvido”.
Com a diretriz bem esclarecida, o alarde parece mais uma falta de compreensão da mesma e, tanto dos ritos, quanto do próprio papel histórico-social da Umbanda e do Candomblé.
A proposta, que ainda tem que ser aprovada pelo Ministério da Saúde, pode enquadrar os conhecimentos difundidos nos terreiros numa categoria de atendimento à saúde que já existe: as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, as PICS. Dentre as PICS estão, por exemplo, a acupuntura, a ioga e as plantas medicinais. Todas identificadas pela Organização Mundial da Saúde como “Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas”, reconhecendo o valor de práticas milenares não inseridas dentro do método científico.
Dentro do espaço da Umbanda, Denise ressalta como ela não se propõe a curar doenças, apenas direcionar. “Não somos cura, somos orientação. É um trabalho de formiga. União, cumplicidade, parceria e amor ao próximo.”
A política que estabelece as PICS mira, sobretudo, o potencial de atuação dessas práticas dentro da Atenção Primária à Saúde. Isso significa a capacidade delas promoverem ações individuais e coletivas para prevenir agravamento de doenças, estimular o tratamento e promover o autocuidado. E aborda não apenas os aspectos físicos, mas emocionais, mentais e sociais. Como a própria resolução da CNS sobre as religiões afro-brasileiras estabelece.
Essa atuação engloba não só a Umbanda, mas também o Candomblé, que à parte do cuidado, tem seus ritos de cura estabelecidos internamente entre quem pratica a religião. “Já ajudei através de fundamentos, rituais, banhos, ebós (oferendas), chás, comidas e preceitos a aliviar fisicamente, psicologicamente, mudar hábitos ou curar outros”, conta Nilton. O protocolo da cura espiritual é, em sua perspectiva, um aliado do protocolo da cura medicinal. O que, dentro de uma perspectiva científica, caso assim você queira analisar, não anula os outros papéis desempenhados.
Enxergando isso, a Política Nacional das PICS mantém uma logística de monitoramento e avaliação, além de promover a realização de estudos e pesquisas para entender os possíveis benefícios e riscos.
Os dois sacerdotes também concordam que a aprovação da proposta pode ocasionar mais intolerância com a Umbanda e o Candomblé. O que não faz com que se abalem.

Foto: Reprodução/Internet
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“Acredito que muitos irão fazer como já fazem, o olhar duvidoso, a incredulidade, fazer ofensas, e outros vão espalhar falsas notícias negativas”, afirma Denise de Oyá. Ainda que os ataques de outras religiões possam aumentar, isso não os fez achar negativo caso se abra um precedente para inclusão de mais religiões como complementares ao SUS. “Abriria precedentes para positivar as boas práticas humanas. Um babalorixá, médico, pastor, rabino, monge, padre ou curandeiro devem estar sempre prontos para atender suas comunidades. Com as mais atípicas, complexas ou comuns necessidades”, diz Nilton D’Odé.
A participação de cada crença é válida, mas a sacerdotisa faz sua ressalva: “Precisam entender que a Umbanda e o Candomblé não estão entrando nesta batalha apenas com rezas. Tem muito estudo e conhecimento envolvido”.

Foto: Roberta Guimarães/Revista Continente
Foto: Roberta Guimarães/Revista Continente
Com a diretriz bem esclarecida, o alarde parece mais uma falta de compreensão da mesma e, tanto dos ritos, quanto do próprio papel histórico-social da Umbanda e do Candomblé.
A proposta, que ainda tem que ser aprovada pelo Ministério da Saúde, pode enquadrar os conhecimentos difundidos nos terreiros numa categoria de atendimento à saúde que já existe: as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, as PICS. Dentre as PICS estão, por exemplo, a acupuntura, a ioga e as plantas medicinais. Todas identificadas pela Organização Mundial da Saúde como “Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas”, reconhecendo o valor de práticas milenares não inseridas dentro do método científico.

Foto: Alliane Padilha/Revista Senso
Foto: Alliane Padilha/Revista Senso
Dentro do espaço da Umbanda, Denise ressalta como ela não se propõe a curar doenças, apenas direcionar. “Não somos cura, somos orientação. É um trabalho de formiga. União, cumplicidade, parceria e amor ao próximo.”
A política que estabelece as PICS mira, sobretudo, o potencial de atuação dessas práticas dentro da Atenção Primária à Saúde. Isso significa a capacidade delas promoverem ações individuais e coletivas para prevenir agravamento de doenças, estimular o tratamento e promover o autocuidado. E aborda não apenas os aspectos físicos, mas emocionais, mentais e sociais. Como a própria resolução da CNS sobre as religiões afro-brasileiras estabelece.

Foto: Marcelo Camacho
Foto: Marcelo Camacho
Essa atuação engloba não só a Umbanda, mas também o Candomblé, que à parte do cuidado, tem seus ritos de cura estabelecidos internamente entre quem pratica a religião. “Já ajudei através de fundamentos, rituais, banhos, ebós (oferendas), chás, comidas e preceitos a aliviar fisicamente, psicologicamente, mudar hábitos ou curar outros”, conta Nilton. O protocolo da cura espiritual é, em sua perspectiva, um aliado do protocolo da cura medicinal. O que, dentro de uma perspectiva científica, caso assim você queira analisar, não anula os outros papéis desempenhados.
Enxergando isso, a Política Nacional das PICS mantém uma logística de monitoramento e avaliação, além de promover a realização de estudos e pesquisas para entender os possíveis benefícios e riscos.
O complemento das religiões de matriz africana ao SUS não representa a recomendação indiscriminada do tratamento de um câncer através de um terreiro. Muito pelo contrário, ela se encaixaria dentro de uma estrutura que busca reconhecer, entender e adequar os potenciais delas dentro da saúde pública. As competências espirituais e sociais dos barracões não visam substituir a medicina ou a ciência.
Além da coexistência, as religiões de matriz africana mostram potencial de servir como porta de entrada para o tratamento médico. As críticas recebidas pela Umbanda e Candomblé não se repetem para as demais práticas reconhecidas dentro do SUS e que, dentro dos padrões científicos, atuam de forma semelhante. Que, vale lembrar, não é a única forma de produção do conhecimento existente – e a qual, por exemplo, nem a extremamente popular psicanálise se enquadra.