A alma encantadora dos bares do Rio

Botecos do Rio de Janeiro dialogam com a cidade e servem de acolhimento e espaço de sociabilidade para a população carioca

É muito difícil explicar a história da cidade do Rio de Janeiro sem falar da importância de seus bares e botequins. Nesse ambiente, há o encontro com os mais diversos personagens, as mais impressionantes histórias, angústias e anseios do cotidiano das ruas. Para o professor e historiador Luiz Antônio Simas, a função do botequim na cidade do Rio pode ser comparada a uma Ágora no auge da democracia grega. E para a dona de um dos bares mais tradicionais da Tijuca, Luiza Souza, foi no botequim que ela encontrou sua força e maior transformação. 

Luiza Souza, a "Musa das Panelas"/ Foto: reprodução Instagram

Luiza Souza, a "Musa das Panelas"/ Foto: reprodução Instagram

O samba e o burburinho de fundo, as mesas na calçada, o chopp gelado saindo, o Cristo negro grafitado na parede e as iniciais “DG” que representam o “Da Gema” não deixam dúvidas de onde estamos. Trata-se do Bar da Gema, conhecido em toda a cidade pela boa comida e pela recepção calorosa com os clientes. E isso Luiza Souza, uma das fundadoras junto com Leandro Amaral, seu sócio, comprova no minuto seguinte: ela abre um sorriso assim que me vê e pede dois chopps gelados para iniciarmos a conversa

Mulher, negra, nascida e criada nas ruas de Brás de Pina, bairro do subúrbio carioca, Luiza ou “Musa das Panelas” diz que em seus 58 anos de vida, foi o bar que a transformou. “Eu nem sempre fui totalmente desprovida de preconceitos. Mas aqui você vê todo o tipo de gente, é uma diversidade muito grande”, relata. Para ela, o bar fundado em 2008 significa muito mais do que “só uma empresa”. O Bar da Gema é um projeto de acolhimento e ativismo também.  “Somos negros, eu e Leandro e, hoje em dia damos preferencia a contratar negros para trabalhar conosco. A comunidade LGBTQIA+ também é a nossa meta e viés.”

Fartos em memórias, para Luiza esses espaços representam também a liberdade: “As pessoas não vão ao botequim simplesmente para beber ou comer. Você vê uma pessoa sentada e não sabe o que ela está passando, mas basta um garçom chegar, perguntar o que ela vai pedir e às vezes começa uma terapia. O botequim é um lugar que você pode ser quem é”. 

Dentre as experiências acumuladas, ela conta sobre os frequentadores assíduos, tijucanos e não-tijucanos que se espalham pelo lugar na alegria e na tristeza, até que a morte os separe. Luiza conta que, certa vez, uma família de clientes chegou ao bar depois de muito tempo sem aparecer. Logo os funcionários perguntaram pelo pai, que não estava presente. “A esposa então respondeu ‘acabamos de vir do velório’”, lembra. “O clima pesou, eu a abracei, mas ela logo disse: ‘Sem constrangimento, gente. Era aqui que ele gostaria de estar’”.

Afeto, acolhimento e liberdade. Palavras que Luiza usou diversas vezes para definir o papel do botequim na sua vida e na vida dos frequentadores. O professor e historiador Luiz Antônio Simas explica que essa “sensação de afeto” com o botequim está diretamente ligada com a própria construção de sociabilidade do Rio. “É uma cidade 'rueira’, de cultura de rua”, comenta. “E o bar, o botequim, a birosca são espaços de construção de sociabilidade, assim como é a quitanda, a barbearia de rua, o terreiro e a igreja.”

O professor, que se diz um “apaixonado pelas ruas”, pontua que há também, no espaço do botequim, um centro de aprendizagem do cotidiano. “A gente tem a tendência de confundir escolaridade com educação e não é a mesma coisa. Escolaridade é a sua formação dentro de uma escola, claro que o  processo educativo está acontecendo, mas a educação é um fenômeno cotidiano que acontece também na rua, nas esquinas, no botequim, nas encruzilhadas e nos centros espirituais.”

Para Simas, a vivência nesses locais são comparáveis a clássica Ágora da Grécia antiga, local em que cidadãos atenienses se encontravam para diferentes debates, assembleias e festivais: “Aquele espaço em que você debate a cidade, em que você interage com as pessoas, descobre quem é que se separou, quem é que morreu, em que você xinga o prefeito, o governador e o presidente”, compara. “Então é um espaço de construção de sociabilidade e, a própria história do botequim do Rio de Janeiro, é muito marcada por ser um espaço social sobretudo da classe trabalhadora.”

Já presentes no século XVIII, esses espaços foram, durante muito tempo, estigmatizados. Na origem, seus donos eram em grande parte imigrantes da Europa, a maioria portugueses, seguido dos espanhóis. Com o passar do tempo, os botequins passaram a cada vez servir de ponto de descontração dos trabalhadores, que com um bom café ou cachaça, jogavam conversa fora. O tal estigma também diminuiu e, desde 2011, a prefeitura do Rio nomeia alguns desses bares como Patrimônio Cultural Carioca. Na Tijuca, estão na lista o Salete, o Bode Cheiroso e o Bar do Momo

Melhor Cozinha pela Veja Rio, duas vezes a melhor coxinha da cidade, vencedor da edição de 2011 do concurso “Comida di Buteco”, melhor petisco com o prato “Polentinha com Rabada”, esses são alguns dos prêmios pendurados na parede do Bar da Gema. A “Musa das Panelas”, apelido que ganhou junto com a boa fama do local, comenta que agora “abrir um boteco está em alta”, mas que nem sempre foi assim. “Teve muito burburinho quando eu e Leandro fomos abrir o bar. Falavam: ‘Poxa, fizeram faculdade de gastronomia e para abrir boteco?’ Hoje em dia, todo mundo quer abrir um.”

De fato, parece que agora o “branding” de boteco está em alta. Em bairros nobres da cidade, imitações daquilo que já foi considerado “tradicional demais” surgem a todo vapor. Simas diz que não gosta muito dessa “mcdonaldização” dos botecos, mas entende que é algo dinâmico da cidade também. “O problema nem é essa questão dos botequins paulistas usarem como simulacro o botequim carioca. O problema é que já tem botequim carioca se inspirando nesses botequins paulistas que fizeram essa leitura, essa apropriação.”

Luiza também diz não ser contra, mas afirma: “ Se perguntar se é um botequim de essência… não é”. E quando questiono o que o local precisa ter então para ser considerado um “autêntico boteco", ela pensa e responde com um sorriso de canto: “O dono tem que estar no bar em algum momento”.

Luiza e Leandro no Bar da Gema / Foto: reprodução Instagram

Luiza e Leandro no Bar da Gema / Foto: reprodução Instagram

Os dadinhos de polentinha com rabada, prato premiado do bar / Foto: Reprodução Instagram

Os dadinhos de polentinha com rabada, prato premiado do bar / Foto: Reprodução Instagram

Luiz Antônio Simas no Bar Madrid, um dos seus bares favoritos/ Foto: Monica Ramalho

Luiz Antônio Simas no Bar Madrid, um dos seus bares favoritos/ Foto: Monica Ramalho

Bar do Bode Cheiroso, fundado na década de 1940, na região da grande Tijuca. Também está na lista de favoritos do professor/ Foto: reprodução internet

Bar do Bode Cheiroso, fundado na década de 1940, na região da grande Tijuca. Também está na lista de favoritos do professor/ Foto: reprodução internet

Bar do Momo, em funcionamento desde 1972, foi fundado por um legítimo Rei Momo, figura mítica do carnaval carioca./ Foto: Reprodução Instagram

Bar do Momo, em funcionamento desde 1972, foi fundado por um legítimo Rei Momo, figura mítica do carnaval carioca./ Foto: Reprodução Instagram